Mesmo após 40 anos desde o fim da ditadura militar, o Brasil parece ainda ter uma democracia frágil. Em fevereiro deste ano, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República, por tentativa de golpe de Estado após a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Bolsonaro foi apontado como líder da organização que tentou derrubar o regime democrático no País. Em defesa apresentada agora em março ao Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente disse que não há provas em relação a essas acusações.
Esta reportagem faz parte da série ‘Heranças da Ditadura’, que fala sobre as marcas deixadas pelo regime militar na educação, segurança pública e política 40 anos depois do fim da repressão no Brasil
Episódios como esse, de novas tentativas de golpe, podem ser vistos, segundo especialistas, como um sintoma da descrença da população nos políticos, devido a tantos escândalos de corrupção envolvendo parlamentares e chefes de Estado. Também mostra que a nação sequer conhece a sua história. Lá atrás, no século 18, o pensador irlandês Edmund Burke já dizia: “Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”.
Então, vamos relembrar o que aconteceu? O golpe militar que depôs o então presidente João Goulart deu início, em 1º de abril de 1964, a um tempo sombrio, da ditadura no Brasil. E os “anos de chumbo”, entre 1968 a 1974, entraram para a história brasileira como o período mais intenso da repressão do regime.
Esse período foi seguido por anos de maior abertura política, de 1974 até 1978, conhecido também como “anos brandos”, embora a violência por parte do Estado ainda fosse mais regra que exceção. Do começo ao fim da ditadura, em 1985, estima-se que 20 mil pessoas tenham sido torturadas, segundo levantamento da Human Rights Watch (HRW). Pelo menos 434 morreram e 4.841 representantes eleitos pelo povo foram destituídos de seus cargos.
O motivo por trás da instauração de um período ditatorial era político. Visava a derrubada do trabalhismo, que defendia, na época, o desenvolvimento da economia e a bem estar-social da população, assim como o processo de industrialização. O objetivo era impor uma modernização pela via autoritária.
“Ele [o regime] se construiu como uma resposta a todo um processo de transformação social que vinha acontecendo no final da década de 1950 e início dos anos 1960 que, de alguma forma, confrontavam o fato de que a gente tinha, e, infelizmente, continuamos tendo, uma das estruturas sociais mais desiguais do mundo. Então, houve todo um processo de mobilização social entre o final dos anos 50 e início dos anos 60 no Brasil, que a ditadura, em certa medida, rompe com isso”, explica o historiador Marcelo Kunrath Silva, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Esse período, que durou pouco mais de duas décadas, gerou o aprofundamento dessas desigualdades, que permeiam o Brasil há tantos séculos. E quando o País chegou à redemocratização, apesar dos vários avanços, o cenário da desigualdade ainda persistiu, gerando implicações políticas profundas no Brasil, na visão do pesquisador.
“A gente vive numa sociedade na qual a nossa população não compartilha nenhum princípio de igualdade. A gente tem um conjunto importante da população brasileira que não só não tem direitos, mas, muitas vezes, não é vista nem como humana. Ou seja, a gente tem um conceito, uma denominação que o pessoal que estuda violência usa, que é a ‘população matável’. A gente tem uma população no Brasil que pode ser morta, e isso não causa nenhuma comoção social. Pode causar algum incômodo, mas as pessoas aceitam isso naturalmente”, afirma Kunrath Silva.
Desigualdade e desconfiança política
O historiador usa como exemplo os ‘corpos que, em geral, as balas perdidas acham’, que são periféricos e negros. “Esse, para mim, é um elemento, uma herança do período ditatorial, mais social, mas com implicações políticas profundas”, ressalta.
O pesquisador questiona o que é pensar na democracia numa sociedade assim, onde há um número reduzido de pessoas e famílias que detêm riqueza e são superiores em relação ao resto da população, inclusive, em termos de direitos.
Isso leva, na visão dele, ao descrédito da política, pois nada muda para quem é considerado “inferior” perante a sociedade já que a maior parte dos recursos não chega neles. Kunrath Silva aponta que algumas das principais saídas para os setores mais precarizados da sociedade é a solução do que ele chama de “além-mundo”, que é quando entra a importância da religiosidade para essa população.
Inclusive, a religião é usada como moeda de troca nas eleições, em que candidatos e políticos usam o nome de Deus para conseguir se eleger. E continuam, durante o mandato, usando das palavras santificadas para manter apoio e crédito durante a trajetória.
“‘Eu não espero mais nada desse mundo, o que vai vir, vai vir de fora desse mundo. Isso, de um lado, obviamente, contribui para reproduzir essa estrutura de desigualdade, mas também é compreensível que essa população seja descrente porque ela já está vendo cotidianamente uma série de problemas”, analisa.
E Kunrath Silva complementa: “De outro lado, acho que uma parte mais no topo da sociedade tem um profundo receio da democracia e da participação [de todos]. A ideia fundante, de fato, de uma participação democrática, que todos têm o direito de participar, de decidir, provoca um profundo incômodo daqueles que usufruem dessa desigualdade brutal que conforma a sociedade brasileira”.
O professor cita, como exemplo, o incômodo causado na elite brasileira pelo fato das classes mais baixas terem acesso a viagens de avião, conseguirem fazer compras em shopping, tirar férias e entrar em universidades.
Segundo Kunrath Silva, o fato de as classes mais vulneráveis terem acesso ao conforto é visto como um “horror” pela elite. “Mesmo isso é visto como preocupante, problemático, porque, de fato, a gente tem uma ordem social estamental, é uma ordem social no qual as posições são concebidas como naturais, tudo está bem desde que cada um fique no seu lugar”, diz.
Política autoritária
O pesquisador cita que uma parcela significativa da sociedade compartilha um conjunto de valores, crenças e práticas, do ponto de vista político, que são profundamente autoritários. Ele aponta que não há um reconhecimento da diferença ou aceitação. No entanto, o conflito e a divergência fazem parte de uma sociedade democrática diversa.
“Há uma certa ideia de ordem como uniformidade. É uma dificuldade de lidar com a diferença, com a divergência. E isso, em grande medida, também é um pouco uma surpresa. O fato que o Brasil se redemocratizou, mas se manteve desigual é bastante reconhecido, academicamente e na sociedade. Agora, havíamos imaginado, durante um certo tempo, que a redemocratização tinha produzido, não, obviamente, uma eliminação dessa cultura política autoritária, mas havia uma construção de uma cultura política democrática mais disseminada na sociedade”, analisa.
No entanto, a partir de 2010, a visão dos especialistas mudou. Kunrath Silva pondera, principalmente, em relação ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, e, mais ainda, a partir de 2018, com a eleição do Bolsonaro. Segundo ele, analistas se espantaram com o cenário político porque achavam que parte da sociedade havia aderido majoritariamente à democracia, mas os acontecimentos mostraram o oposto.
Uma série de ideologias, propostas e projetos políticos autoritários, que se identificavam como heranças do período ditatorial, vieram à tona. “O caso do chamado bolsonarismo claramente demanda essa herança, ou seja, se reconhece na ditadura como parte, digamos assim, do que ele é, e isso acabou tendo um efeito bastante importante”, destaca.
Ele descreve esse fenômeno como um elemento oriundo do período ditatorial, que, ao demonstrar uma relativa capacidade de conseguir apoio eleitoral, acabou trazendo parte do campo político brasileiro para a direita e extrema direita autoritária, que busca suas raízes nesse período da história brasileira.
Um exemplo disso são algumas das falas do ex-presidente Bolsonaro, que, quando ainda era deputado federal, dedicou seu voto no impeachment de Dilma ao coronel que comandava o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), local onde a ex-presidente foi torturada aos 23 anos.
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”, declarou Bolsoanro, em meio a palmas e vaias no plenário da Câmara dos Deputados.
O ex-presidente também chegou a dizer, em agosto de 2019, que o coronel torturador era considerado um “herói nacional”. A declaração foi dada após um almoço com a viúva dele, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra.
“Ela conta uma história bem diferente daquela que a esquerda contou para vocês […] Ela tem um coração enorme. Sou apaixonado por ela. Não tive muito contato, mas tive alguns contatos com o marido dela enquanto estava vivo. É um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer”.
Em outra ocasião, Bolsonaro disse ser “chefe supremo” das Forças Armadas. Era março de 2021, e o então presidente fez uma live em seu canal no Youtube, após o discurso na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (SP). “Eu faço o que o povo quiser. Digo mais: eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecendo. As críticas em cima de generais, não é o momento de fazer isso”.
Ele também declarou em entrevista à rádio Jovem Pan que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”. E Bolsonaro não é o único a exaltar o período e promover discursos autoritários.
Rejeição ao diferente e violência
Durante a ditadura, aqueles que pensavam diferente do regime militar eram considerados subversivos. Rubens Paiva, por exemplo, foi tratado como um. O sucesso do filme Ainda Estou Aqui, que retrata a luta de Eunice Paiva para o reconhecimento da morte do marido, desaparecido durante o regime, trouxe de volta as memórias desse tempo.
A população não tinha direitos civis, não podia se manifestar contra os militares, a mídia sequer podia contrapor o governo, e a educação estava sob censura. A violência empregada contra manifestantes era institucionalizada e endossada pela elite.
“A questão de saídas autoritárias e violentas, ou dessas formas de fazer política, continua estando presente no nosso cotidiano. Eu acho que foi uma das grandes surpresas com o que aconteceu entre 2010 e 2020. Nesses 10 anos, a nossa imagem do Brasil mudou, acho que para todo mundo, na verdade. A ideia do País com muitos problemas, mas com uma democracia consolidada, se tornou um grande ponto de interrogação”, explica Kunrath Silva.
Há alguns anos, era difícil imaginar que o País pudesse sofrer mais uma tentativa de golpe de Estado. Hoje, vemos o discurso se repetir com argumentos muito parecidos com os usados durante a ditadura militar: a ameaça comunista – que nunca existiu –, a manutenção da ordem, e claro, da família tradicional brasileira.
“É uma certa incivilidade nas relações, no qual, se eu divirjo de alguém, por princípio, esse alguém não deve existir, ele deve ser eliminado, né? Eu acho que esse é um dos grandes riscos que a gente vivencia hoje, e que, em certa medida, reatualizam práticas e discursos do período ditatorial brasileiro”, reforça o pesquisador.
‘Deseducação’ e despolitização da população
Para Márlon Reis, criador da Lei da Ficha Limpa –que proíbe políticos de serem candidatos–, o maior problema causado pela ditadura foi o atraso no desenvolvimento da nossa formação cidadã. O jurista diz que, como nação, perdemos décadas de avanços no aprendizado da importância das eleições e mandatos.
“Uma deseducação no tempo em que nem eleição direta para presidente se tinha, não tinha eleição nas principais cidades do País, e mandatários biônicos. Tudo isso gerou um atraso na formação cidadã do nosso povo. E nós pagamos um preço muito alto por isso até hoje” — Márlon Reis
Em abril de 2024, uma pesquisa do Datafolha apontou que 71% dos brasileiros com 16 anos ou mais acredita que a democracia é a melhor forma de governo, enquanto 18% acham que tanto faz se for uma ditadura ou não. No entanto, 7% avaliam que, em certas circunstâncias, um regime ditatorial é melhor que o democrático.
A pesquisa mostrou uma oscilação em comparação com dezembro de 2023, quando 75% acreditavam ser melhor a democracia, e 15% relativizavam uma ou outra. Os mesmos 7% ainda acreditavam que a ditadura era melhor.
Reis concorda que a questão da despolitização do povo, que não entende como funciona um governo e suas leis, se trata de um projeto político.
“Eu entendo que isso é muito alentador e importante para os setores da política que dependem disso. Mas nós temos outro tipo de eleitor que, igualmente, paga as consequências dessa despolitização, que é o dependente do político, aquele que precisa dele para solucionar problemas pueris”, destaca.
Falta de justiça e manutenção do autoritarismo
De acordo com o Human Rights Watch, desde 2012, mais de 50 denúncias foram apresentadas pelo Ministério Público Federal (MPF) relacionadas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar. A maioria delas foi rejeitada pela Justiça, usando como argumento a prescrição temporal ou a Lei de Anistia.
Quase 60 anos depois do início do regime militar, em junho de 2022, ocorreu a condenação do delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, o primeiro dos agentes do Estado a ser responsabilizado pelos crimes da época. Ele recebeu a pena de 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, mas a sentença acabou sendo revogada.
Em maio de 2024, quatro ex-agentes e um médico legista foram denunciados pelo MPF por envolvimento no assassinato de Carlos Marighella. O ex-deputado liderava a oposição armada Aliança Libertadora Nacional (ALN) e foi morto em 1969. Além disso, em setembro de 2024, a Promotoria Federal entrou com ações civis contra mais de 100 ex-agentes por tortura, desaparecimentos e assassinatos.
Ou seja, mesmo depois de 40 anos dos militares deixarem o poder, não há prisões. Os militares que ainda estão vivos continuam recebendo pensões e aposentadorias pelos trabalhos prestados ao País. Já os que morreram, as famílias são detentoras dos valores. Há uma tentativa, mas a reparação dos danos desse período ainda não ocorreu.
A sensação de injustiça por aqueles que foram mortos e violentamente agredidos é quase que palpável. Isso também contribui para a manutenção do autoritarismo. “A gente teve uma preservação de várias coisas, de privilégios, de injustiças que ocorreram nesse período”, aponta Kunrath Silva.
O pesquisador explica que, aqui no Brasil, passado o período ditatorial, os militares saíram do poder com uma valorização social relativamente preservada, apesar de tudo, o que ajuda no ideário das Forças Armadas como poder moderador da República.
“A gente pode fazer um certo paralelo com o próprio período ali entre 2016 até o início do governo Bolsonaro. Boa parte das instituições, meios de comunicação estavam numa postura bastante conivente [dos rumos que a política tomava, trazendo o autoritarismo de volta]”, afirma, citando o voto de Bolsonaro no impeachment.
Segundo ele, se tivéssemos mesmo vivendo em um Estado Democrático de Direito, ele sairia preso do plenário. “Mas, naquele momento, em função do processo do impeachment, a mudança na correlação de forças foi quando os setores do judiciário e da mídia se deram conta de que o bolsonarismo teria um preço muito alto, inclusive, para eles”, explica.
Para o pesquisador, “é fundamental ter uma justiça de transição, um acerto de contas com esse passado”, caso contrário, ele irá se repetir e não seria exagero afirmar que novas tentativas de golpe de Estado possam ocorrer no futuro.
Edição e supervisão: Fabiana Maranhão