O drama de Walter Salles Eu ainda estou aqui teve uma estreia mundial agitada na competição em Veneza, com a atuação principal de Fernanda Torres colocando-a entre as fortes concorrentes ao prêmio de melhor atriz, e agora chega a Toronto para sua estreia na América do Norte antes de seguir para San Sebastian.
Torres interpreta a personagem real de Eunice Paiva, cujo marido Rubens Paiva desapareceu nos primeiros anos da ditadura militar brasileira (1964 a 1985).
O engenheiro civil e ex-deputado de esquerda inicialmente se exilou após o golpe, mas retornou ao Brasil para se reunir com sua esposa e filhos, fixando residência em uma casa de frente para a praia no Rio de Janeiro. Ele foi sequestrado de sua casa em 1971 por forças militares e nunca mais foi visto por sua família.
Eunice Paiva perseguiu incansavelmente a verdade sobre o que aconteceu com seu marido ao mesmo tempo em que mantinha um teto sobre as cabeças de seus cinco filhos. Ela se tornaria um símbolo de resistência contra a ditadura, passando a reinventar sua vida de uma forma inesperada.
Salles adaptou o roteiro com Murilo Hauser e Heitor Lorega do livro ‘Ainda Estou Aqui’, de 2015, no qual o filho de Eunice Paiva, Marcelo Rubens Paiva, revisita a jornada da mãe, ao mesmo tempo em que conta o que ele e os irmãos passaram.
A história também tem ressonância pessoal para o diretor, que era amigo de infância da filha do meio, Nalu, e visitante regular da casa boêmia da família.
Salles e Torres já trabalharam juntos em Terra Estranha (1995) e O Primeiro Dia (1998), enquanto a mãe da atriz Fernanda Montenegro, que é considerada uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos, também compartilha brevemente o papel de Eunice Paiva, aparecendo como a protagonista em seus últimos anos. Eles são acompanhados no elenco por Selton Mello como Rubens Paiva. O projeto também reúne Salles com sua colaboradora regular, a diretora Daniela Thomas, que leva um crédito de produtora artística.
Com estreia prevista para novembro no Brasil, o filme provavelmente gerará debate no país e também é um forte concorrente para ser selecionado como a melhor produção do país na categoria Melhor Filme Internacional na 97ª edição do Oscar.
O Deadline conversou com Salles um dia após a agitada estreia do filme em Veneza.
PRAZO FINAL: Você pode falar sobre a gênese do filme, que também está relacionada à sua conexão pessoal com a família Paiva e com o livro?
QUARTOS WALTER: A origem do projeto está realmente nessa sobreposição entre o pessoal, as memórias que tenho da adolescência na casa que é o coração do filme, e o fato de que em 2015, Marcelo Rubens Paiva escreveu um livro muito singular, refazendo a história de sua família, mas também entendendo a jornada extraordinária de sua mãe no centro daquela família.
Foi quando ele percebeu, aos 50 anos, que ela tinha sido a verdadeira heroína daquela família. A humanidade naquele livro, a profundidade existencial do que ele estava compartilhando conosco, o público, realmente mexeu comigo, uma coisa muito profunda… Eu estava ao mesmo tempo apaixonado pela ideia de adaptá-lo e um pouco tímido, pois estava me perguntando se seria possível que a tradução cinematográfica estivesse no mesmo nível do livro. Os livros são geralmente melhores que os filmes.
PRAZO FINAL: Considerando que você conhecia as crianças no centro da história, isso colocou uma pressão extra sobre você para acertar?
QUARTOS: Sim, mas o que realmente me libertou foi o fato de que o Marcelo não só abraçou a possibilidade da adaptação, mas como ele também é um roteirista – mesmo que ele não tenha escrito esse roteiro – ele estava próximo disso e próximo das várias vidas do roteiro, e comentou aqui e ali. Havia uma bússola ali que realmente nos ajudou, mas não só da contribuição dele, mas da contribuição da família como um todo.
As cinco crianças, agora adultas, conversaram muito conosco, com os roteiristas, comigo, e coletivamente chegamos onde estávamos. É um filme sobre uma família, feito por uma família de cinema, porque este é o terceiro filme que Fernanda Torres e eu fazemos juntos, e o segundo filme com Fernanda Montenegro, depois que fizemos Estação Central juntos. Olhando agora retrospectivamente, acho que a única maneira de fazer um filme sobre a família é trazer sua própria família do cinema para ele.
PRAZO FINAL: Ontem à noite na estreia, você, Fernanda Torres e Melton Sello desceram ao círculo inferior para abraçar Marcelo Rubens Paiva, que não pôde se juntar a vocês na galeria superior porque ele está em uma cadeira de rodas. Quem era a moça loira que estava com ele?
QUARTOS: Essa era Nalu. A filha do meio. Eu precisava ir até ela porque ela era a fonte de tudo aquilo. Quer dizer, ela me trouxe para aquela casa. Ela era minha querida amiga e ainda é uma querida amiga.
PRAZO FINAL: Uma sensação de perda e nostalgia permeia o filme. Era esse seu objetivo?
QUARTOS: Os primeiros 30 minutos do filme são realmente informados pelo livro, mas também por vislumbres de memórias que tenho daquele espaço, daquela família, dos amigos que estavam dentro e fora da casa o tempo todo, até mesmo o cheiro que tenho daquela casa. Isso se traduz em uma câmera realmente fluida indo de grupo para grupo e dando uma sensação de mobilidade e evolução constante. Havia um mundo de possibilidades naquela casa, em certo sentido, e eu queria que isso estivesse presente no começo.
Mas uma vez que há a perda, quando a polícia militar invade aquela casa, eu tive que imaginar como aquele espaço era sem luz, com sons abafados, sabe, era completamente o antônimo do que eu conhecia. O que nos informava era o jeito de Eunice estar no mundo. No centro da história, você tem uma mulher que nunca se deixou vitimizar, que nunca se curvou para o governo. Quando ela tirava fotos públicas, ela sorria. Ela não combateu o regime militar que havia assassinado seu marido de forma frontal, mas ela o corroeu. A contenção que ela tem é parte de sua força… O fato de ela não compartilhar imediatamente que o marido está morto dá a você a sensação da profundidade da perda.
PRAZO FINAL: Isso também poderia ter sido para proteger as crianças?
QUARTOS: Você está certo, ela definitivamente está pensando que está fazendo a coisa certa ao não compartilhar a perda com as crianças, mas ela também está processando isso com certeza. A narração da perda em diante se torna muito mais subjetiva. É uma família da perda em diante, que se comunica não verbalmente, mais do que verbalmente, olhando. As filhas entendem, olhando uma para a outra, que algo aconteceu naquele restaurante [scene] por exemplo… Eunice está olhando ao redor para a vida que se segue, mas a dela não. É por isso que eu queria que a vida florescesse no começo do filme, para que você pudesse ter uma noção do que aquela família poderia ter sido. Aquela família que você vê no Super 8 no final é o que aquela família deveria ter sido.
Estávamos à beira de ser um país tão inventivo. Culturalmente, tudo estava acontecendo corretamente no Brasil. Estávamos desenvolvendo novas formas de educação pública, novas maneiras de desenvolver a reforma agrária. Houve movimentos culturais incríveis na música, no cinema, na literatura e isso foi completamente implodido por um regime autoritário. Você tem a sensação de sua perda pessoal, a sensação de perda da família, mas também a sensação de perda pela qual um país passou… Mas isso não significa que você não pode se reinventar e que não deve se reinventar. Essa é a beleza do livro. É isso que eu realmente queria transmitir sobre essa personagem, porque foi isso que ela nos ensinou, de certa forma.
PRAZO FINAL: Você tinha 14 anos quando tudo isso aconteceu. Você voltou para casa depois que a família Paiva foi embora?
QUARTOS: Sim, e eu vi a casa fechada. Havia a oposição de uma casa aberta para o mundo, para uma casa que estava completamente fechada. E então havia algo também traumático em que se tornou um restaurante. E então um dia, a casa foi demolida, e eu também vi isso. Eu moro no Rio e toda vez que eu ando naquela parte da cidade, eu não posso deixar de voltar para aquela realidade, Agora, há um imenso arranha-céu com apartamentos de luxo onde a casa ficava, chamado Juan-les-Pins.
PRAZO FINAL: Este é seu primeiro longa-metragem de ficção desde Na estrada 12 anos atrás. O que você tem feito nesse meio tempo?
QUARTOS: Bom, antes de tudo, depois de um longa, eu sempre volto para documentários. Na verdade, estou editando um documentário de cinco horas agora. É sobre o ponto de convergência entre futebol e política. É sobre um jogador de futebol brasileiro dos anos setenta chamado Sócrates (Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira) como o filósofo grego. Ele foi um dos jogadores que lançou um movimento pela democracia em um time de futebol. Isso era inédito. Ele era um personagem extraordinário. Ele era o resultado da migração interna no Brasil. Seus pais eram servidores públicos autodidatas. Ele estudou para ser médico e foi jogador de futebol ao mesmo tempo, o que é muito raro. Ele era ambos. Ele teve uma vida extraordinária como jogador de futebol e foi muito trágico no final da vida. Vai sair no começo do ano que vem.
Fiz um documentário sobre Jia Zhangke (Jia Zhangke, um cara de Fenyang), um diretor cujo trabalho eu amo, e também trabalhei em outros dois roteiros, um deles está pronto para ir. Sou um escritor lento ou um desenvolvedor lento de projetos. Gosto de dar tempo para decantar as coisas para ter certeza de que o projeto é o projeto a ser feito.
PRAZO FINAL: Você pode falar alguma coisa sobre o novo projeto? que mais avançado?
QUARTOS: Também se passa nos anos setenta, desta vez na Argentina, e é escrito por uma jornalista realmente incrível. Ela me trouxe o projeto e é algo que eu abracei e espero que seja o próximo projeto. É a história de um sequestro realmente grande que ocorreu na Argentina, mas com ramificações políticas. Mas também, novamente, é uma história humana. Fernando Montenegro me ensinou muitas coisas, mas há uma linha que eu nunca vou esquecer. Ela disse: “A única maneira de sermos salvos é através do humano e do existencial.” Sou atraído por histórias que têm um tipo de possibilidade de expressar algo de uma história pessoal específica, muito mais do que algo que é guiado pelo enredo. Estou muito mais interessado pela experiência humana que então informa um enredo, em vez de começar com o enredo e então criar os personagens.
PRAZO FINAL: Voltando para Eu ainda estou aqui, o filme estreia no Brasil em novembro, que tipo de repercussão você acha que ele terá por aí e como a história da família Paiva se encaixa com o que vem acontecendo no país nos últimos anos, com a presidência do político de extrema direita e ex-militar Jair Bolsonaro de 2019 a 2023?
QUARTOS: Quando começamos o projeto em 2015, eu o imaginei como uma história extraordinária de uma mulher e um retrato vívido de um período que não foi suficientemente filmado no Brasil. Nunca pensei que também poderia ser sobre o nosso presente. Mas então, em três anos, a extrema direita ganhou tanta presença e visibilidade no Brasil, que percebi que o filme também era sobre o zeitgeist que, francamente, eu não esperava. Ele vai sair no meio desse momento em que a sociedade brasileira está realmente dividida em duas. O fato de que mais filmes venham para lançar luz e talvez oferecer reflexões daquele período para as pessoas pensarem é algo, é algo