O biólogo Durrell Kapan apoiou-se nos cotovelos para inspeccionar um arbusto. Espreitou através de um monóculo, na esperança de ver um sinal positivo de uma experiência pioneira para restaurar algo que desapareceu destas dunas costeiras de São Francisco, nos Estados Unidos. As lagartas que estava a tentar encontrar são tão pequenas que é como se estivessem “a viver num mundo diferente”, comparou o biólogo.
Há mais de oito décadas, uma borboleta hipnotizante com asas cor-de-cobalto iridescentes e manchas deslumbrantes, chamada borboleta azul de Xerces (Glaucopsyche xerces), desapareceu de São Francisco. Quando desapareceu, a Xerces tornou-se talvez o insecto mais famoso a extinguir-se.
Por isso, nesta Primavera, a Academia de Ciências da Califórnia, onde Kapan é investigador, e os seus parceiros libertaram dezenas de borboletas de uma espécie próxima. Fizeram-no no Presidio, um parque junto à água na ponta norte de São Francisco.
Kapan estava à procura de descendentes dessas borboletas libertadas, que ele e os seus colegas esperam que venham a preencher um espaço vazio neste ecossistema.
“Esta é uma ideia muito poderosa”, disse Kapan: “A ideia de uma espécie substituta para uma espécie extinta.”
No meio de uma crise de biodiversidade em que um milhão de espécies poderão extinguir-se a nível mundial, a humanidade enfrentará cada vez mais questões complexas: para recuperar os ecossistemas, a sociedade deve substituir os animais que desaparecem? Se assim for, que criaturas devem servir de substitutos para os extintos? E poderá isto tornar-se uma forma indirecta de trazer as espécies de volta da extinção?
A experiência com esta borboleta na Califórnia pode ajudar a responder a algumas dessas questões — mesmo que nem todos concordem que tentar substituir uma borboleta extinta por outra seja a melhor ideia.
‘X’ é de extinção
Antes encontrada nas dunas de areia que acabaram por se transformar em São Francisco, a borboleta azul de Xerces era um polinizador e uma fonte de alimento — e pode até ter tido uma relação simbiótica com as formigas da área.
As lagartas de muitas espécies próximas desta borboleta fornecem às formigas uma substância doce; em troca, protegem as larvas moles contra os predadores. Algumas espécies europeias chegam mesmo a entrar no ninho das formigas e a alimentar-se das suas crias, que as formigas toleram pela doce recompensa.
Trata-se de uma relação “barroca”, afirma o investigador de borboletas Robert Michael Pyle. “É tão complexa que é difícil até mesmo conceber as ramificações.”
O desenvolvimento rápido da cidade de São Francisco devorou o habitat da Xerces, levando-a ao esquecimento e tornando-a a primeira borboleta conhecida a extinguir-se na América do Norte devido à actividade humana. A última foi vista na década de 1940.
Três décadas mais tarde, Pyle estava num comboio em Inglaterra quando, do nada, lhe surgiu a ideia.
Tinha acabado de ouvir uma palestra de um entomologista britânico sobre o declínio de uma espécie de borboleta no Reino Unido. O orador tinha sugerido fazer dessa espécie europeia um símbolo da conservação das borboletas britânicas.
Pyle, um americano, pensou na borboleta azul de Xerces. “Devíamos fazer dela o nosso símbolo para a conservação das borboletas nos EUA”, disse Pyle. O facto de o nome da borboleta começar com um “X”, evocando “extinção”, ajudava.
Pyle fundou a sociedade sem fins lucrativos Xerces Society for Invertebrate Conservation, transformando a borboleta azul de Xerces num símbolo não só das borboletas ameaçadas, mas de todos os tipos de insectos em perigo.
Algo velho, algo novo…
Actualmente, grande parte dos antigos locais arenosos da borboleta azul de Xerces são bairros movimentados de São Francisco. Mas um antigo posto do Exército dos EUA, chamado Presidio, é agora um parque nacional onde os gestores do local conseguiram restaurar algumas das dunas perdidas.
O Presidio Trust, uma agência federal que gere o parque, repovoou a paisagem costeira com tartarugas, tritões e libelinhas que outrora ali viviam. “Tivemos alguns sucessos”, disse Lew Stringer, ecologista do Presidio Trust.
Para encontrar um substituto da borboleta Xerces, Kapan e os seus colegas retiraram ADN das patas de espécimes de Xerces mantidos na Academia de Ciências da Califórnia e analisaram os seus genomas. A sua análise revelou que uma borboleta relativamente comum chamada azul-prateada (Glaucopsyche lygdamus) é um parente próximo.
Assim, a equipa procurou borboletas azuis-prateadas que esvoaçassem em habitats semelhantes aos antigos locais de nevoeiro e areia da Xerces em São Francisco. Encontraram um par semelhante a cerca de 160 quilómetros a sul, no condado de Monterey. Ambas as borboletas dependiam da mesma planta (Acmispon glaber) para pôr ovos.
“Foi uma combinação ecológica muito boa”, disse Stu Weiss, um ecologista de conservação que foi consultor no projecto. “Provavelmente, a coisa mais importante para uma reintrodução de borboletas é obter a correspondência ecológica mais próxima possível”.
Em Abril e Maio, os investigadores colocaram delicadamente algumas das borboletas em arcas frigoríficas e alimentaram-nas com a bebida isotónica Gatorade durante a viagem até à cidade para a libertação.
“Foi muito comovente”, disse Ryan Phelan, directora-executiva da Revive & Restore, uma organização sem fins lucrativos parceira do projecto. Segurar uma borboleta na palma da sua mão e colocá-la numa planta “parecia uma oferta religiosa”, comentou.
Algo emprestado e algo azul
A introdução da borboleta exigiu que várias organizações trabalhassem juntas durante anos. Uma das que decidiu não fazer parceria no projecto foi a própria Sociedade Xerces.
Embora o grupo que leva o nome da borboleta não se tenha oposto ao projecto, referiram que não o viam “como uma prioridade quando há tão pouco financiamento para a conservação de insectos”. As palavras são de Scott Black, director-executivo da sociedade.
“Devíamos investir os fundos limitados na protecção e recuperação do habitat das espécies de borboletas que estão actualmente em vias de extinção, em vez de introduzir uma espécie comum em novas áreas”, acrescentou Black.
Os proponentes dizem que a factura da libertação da borboleta não foi elevada — mais de 70.000 dólares (cerca de 64 mil euros) para a sequenciação do genoma, modelação ecológica e outros trabalhos, de acordo com Kapan.
Para Pyle, que fundou a Sociedade Xerces, a sensação é de uma oportunidade perdida. “Pensei que talvez estivessem a perder uma coisa boa”, disse ele sobre o grupo.
Durante anos, Pyle apoiou a ideia de introduzir um parente próximo da borboleta extinta. Talvez se os cientistas transportassem um insecto geneticamente semelhante de um local próximo, a selecção natural no novo ambiente levaria as borboletas introduzidas a serem ainda mais parecidas com as Xerces. Como escreveu num ensaio de 2000, “a extinção pode não ter de ser sempre para sempre”.
Agora, os cientistas têm as ferramentas genéticas para testar a adaptação das borboletas azuis-prateadas. “Poderemos colocá-la de novo numa trajectória que, por selecção natural, lhe permita evoluir para algo que se assemelhe à borboleta azul Xerxes”, disse Stringer.
Weiss interroga-se sobre a forma como os substitutos se adaptarão ao nevoeiro de São Francisco. “Essa é a parte realmente excitante da genética — como a selecção natural aperfeiçoa o desempenho dos organismos”, disse Weiss. Mas outras características, como o padrão distinto de manchas na parte inferior das asas das borboletas Xerces, podem perder-se para sempre. “Não tenho tanta certeza quanto a isso”, disse.
Reencontrar a teia da vida
A introdução da borboleta azul-prateada é semelhante a esforços de conservação anteriores, de acordo com Ben Novak, cientista principal da Revive & Restore.
O grupo está envolvido num trabalho ainda mais ambicioso, utilizando os avanços genéticos para trazer de volta o pombo-passageiro (Ectopistes migratório) e outros animais extintos.
Os lobos que vagueiam actualmente em Yellowstone eram originários do Canadá, observou. Os falcões-peregrinos que sobrevoam as cidades da Costa Leste descendem de transplantes trazidos de outros locais.
“O facto de se verem ou não borboletas no próximo ano será essencial”, disse. “As reintroduções de borboletas são difíceis.”Por agora, os cientistas de São Francisco estão à espera de ver o que acontece a seguir.
No final de Maio, Kapan ficou entusiasmado ao ver uma lagarta peluda com cerca de seis milímetros de comprimento aninhada junto a uma flor numa planta onde já tinha visto ovos de borboleta minúsculos — “tão minúsculos que são essencialmente mais pequenos do que uma semente de sésamo”. Mas uma análise posterior de fotografias da lagarta revelou que não se tratava de uma borboleta azul-prateada, mas de outra espécie de borboleta.
Kapan não se deixa dissuadir. Na próxima Primavera, os investigadores vão tentar ver se “uma população autossustentável e totalmente estabelecida” de borboletas azuis-prateadas está a começar a voar, disse.
Este trabalho não é “um projecto de des-extinção ao estilo do Parque Jurássico”, disse Kapan. Mas, para ele, é necessário para reavivar os ecossistemas perdidos. “Em muitos casos, há a necessidade directa de fazer algo semelhante para centenas de espécies, de modo a reestruturar a teia da vida”.