A nova peça do Teatro Praga não é nem “sobre” Antígona, nem “anti-sobre” Antígona


Um podcast em que os cinco interlocutores defendem a mesma ideia não tem interesse nenhum, diz Paula Diogo ainda no primeiro quarto de RE: Antígonaespectáculo que o Teatro Praga estreia esta quinta-feira (19h) e apresenta até domingo no Teatro Carlos Alberto, no Porto. Pode soar algo disparatado, continua a actriz — que ao longo de duas horas partilhará o palco com André e. Teodósio, Inês Vaz, Maria João Vaz e Paulo Pascoal —, mas “viver na esfera é estar dos dois lados”.

“É um bocado esta ideia de que somos multifacetados, contraditórios”, diz Teodósio, criador da peça juntamente com José Maria Vieira Mendes. E no caso de Antígona, heroína da mitologia grega que ousa contornar as leis do tirano Creonte ao procurar despedir-se com dignidade do seu irmão Polinices, falecido em combate, essa complexidade tende a ser encostada para canto, considera o co-fundador do Teatro Praga. “Ela tem sido massacrada por ideias de ‘bem’, ‘justiça’, ‘emancipação’, ‘utopia’ ou ‘desejo’”, escreve a companhia de teatro sediada em Lisboa na sinopse do seu espectáculo. “Quisemos devolver humanidade à figura, desmultiplicá-la, mostrá-la como alguém com erros”, conta Teodósio ao PÚBLICO entre ensaios.

O actor e encenador revela aquilo que conduziu a este espectáculo. “A Escola Superior de Dança convidou-me há uns anos a fazer um exercício e pensei: ‘Quero responder a uma obra de arte.’ Antigamente, havia muitas peças que eram peças de resposta: alguém fazia, suponhamos, A Lagartixae uma outra companhia, de um teatro mais vernacular, respondia com uma sátira chamada Um Osga. As obras respondem ao seu tempo, respondem a ideias, mas nós queríamos responder a obras de arte concretas.”​

Na altura do convite feito pela Escola Superior de Dança, André e. Teodósio fez RE: Pneupartindo do filme de Quentin Dupieux sobre um pneu psicopata e com poderes psíquicos que inicia uma matança no deserto da Califórnia antes de se apaixonar por uma mulher. A vontade de agora trabalhar, desconstruir, baralhar a Antígona de Sófocles prende-se com o facto de o Porto ser a cidade a acolher a estreia desta peça (uma co-produção que junta o Teatro Praga, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional São João) e de “uma das obras icónicas” do Teatro Experimental do Porto (TEP) ser “a versão da Antígona do António Pedro”, nome histórico não apenas do TEP (do qual foi o seu primeiro director artístico) como do teatro português no geral.



A Antígona de Maria João Vaz é a Antígona mais clássica, que “insiste” muito para fazer “a versão oficial da coisa”, como conta a actriz
João Tuna

Pelo palco, habitado por várias esculturas gregas junto a motos — pares inusitados, pensados pelo artista plástico Tiago Alexandreque, conforme refere André e. Teodósio, opõem “uma coisa em velocidade a uma coisa estática, uma coisa leve e de fuga a uma coisa pesada” —, passam várias Antígonas, ou, como sugere Inês Vaz ao PÚBLICO, “uma voz única que tem muitas camadas”. Teodósio explica que enquanto uma Antígona é “mais linear” (a de Maria João Vaz, que “insiste” muito para fazer “a versão oficial da coisa”, como conta a actriz), outra (a de Paula Diogo) é “mais contestatária”. Com o avançar do espectáculo, as várias Antígonas vão-se “desmontando”, num espectáculo “feito propositadamente para ser desorientante”.

Não é nem “sobre” Antígona nem “anti-sobre”. Ao mesmo tempo que mete muita coisa na centrifugadora, é ou parece ser sobre nada em particular. É um espectáculo “muito rápido” — “Podia ser uma sucessão de histórias do Instagram, só que com mais informação, e informação mais pesada”, entende o encenador — e um “espectáculo para irritar”, beliscando a ideia de heroísmo. “A Antígona ser filha de um rei é tu aceitares que ela tem togas feitas por escravos”, diz Teodósio.

RE: Antígona pega em conceitos e analisa os seus contraditórios, procurando sublinhar a importância de “ter paciência, saber dialogar” com o outro lado da barricada. No fim de tudo, fica a “experiência” — uma “viagem”, como sugere Maria João Vaz, que fala numa “homenagem ao ser humano”. “Não há perfeição, temos todos vários lados diferentes.” É assim, embalado por esta inspiração whitmaniana, que o Teatro Praga, conforme resume na sua sinopse, “mata Antígona, de todas as formas de que se lembra, para lhe dar a morte a que nunca teve direito”.



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