“Vem com cuidado.”
Um sorriso incrédulo iluminou o rosto de Maria. Não queria crer que Miguel ia atravessar o país só para jantar com ela e envolvê-la de novo no seu abraço. Não tentou demovê-lo daquele desvario. Estava há quase uma semana em Odeceixe, na casa onde passava férias todos os verões, com os seus dois rapazes, de cinco e sete anos, o pai e a madrasta, e tinha urgência de ser livre, largar tudo por umas horas que fosse. Queria esquecer os papéis de mãe zelosa, de filha responsável, de mulher contida, e ser apenas ela. Ansiava não ter de inventar desculpas para fumar um cigarro às escondidas, beber sem pensar nas consequências, sentir-se livre de olhares de reprovação. A ideia de que alguém estivesse disposto a fazer tamanha loucura, percorrer mil e trezentos quilómetros para estar com ela, agitava-lhe o coração de excitação, como que preparando-a para o que estava para vir. Suspirou.
Na manhã seguinte, depois de um almoço apressado, Miguel entrou no carro e saiu do Gerês em direção à Costa Vicentina. Não via Maria há oito dias e sufocava com a sua ausência. Tinha uma vontade louca de sentir o calor da pele dela, encostá-la a uma parede, beijá-la, arrancar-lhe a roupa e devorá-la, por fim. Porém, havia nele um misto de arrebatamento e inquietação, um temor impiedoso de que a sua paixão não fosse correspondida. Ter-se-ia deixado iludir por uma fantasia? Estaria a agarrar-se a pequenas migalhas de afeto que Maria lhe oferecia, acreditando que, com o tempo, ela se renderia nos seus braços? Seria para ela apenas uma distração temporária? Um refúgio seguro num período de tempestade? Um bálsamo para um ego diminuído pelo abandono a que foi votada pelo namorado? Precisava de respostas que só a boca dela poderia dar. Precisava não de palavras, mas de beijos capazes de fazer esquecer todas as dúvidas.
Aquele guião era-lhe familiar: as mulheres que mais o torturavam, eram sempre as que mais tesão lhe davam. Uma mão cheia de nada pode ser muito para quem acredita merecer tão pouco. Nunca poderia alegar que não sabia no que se estava a meter, conhecia bem a luz e a sombra de Maria. Era uma mulher bonita e encantadora, de rosto terno e luminoso como uma estrela, mas os seus olhos amendoados escondiam uma alma marcada pelas cicatrizes de antigas chagas.
Crescera num ambiente de abusos e caminhava descalça entre os escombros de várias relações tóxicas, a mais recente das quais com um homem casado que a resgatara das amarras do ex-marido, um milionário playboy e cocainómano, que, num acesso de raiva durante um ataque psicótico, quase a matara de porrada. Hoje era aquele mesmo anjo salvador, quase 25 anos mais velho do que ela, quem a mantinha cativa da sua obsessão, controlando todos os passos que ela dava. Durante três anos, Maria aceitara sem protestar as correntes com que ele a aprisionara, de tal forma que já quase não se reconhecia, mas agora ansiava ter a sua vida de volta. Queria ser como Madame Bovary, sentir-se novamente viva e desejada, entregar-se nos braços de outros homens, largar, ainda que por instantes, o peso daquela vida que lhe parecia sempre aquém do que ela sonhara. Tinha chegado a hora de recuperar a mulher livre que ela sabia que ainda era. Estava pronta.
Dentro dela, alastrava um fogo que julgava extinto desde que a sua relação com o namorado fora tomada por uma penosa frigidez. Desejos reprimidos durante anos tinham pressa de serem saciados. Sentia-se assanhar. “A repressão é a mãe do desejo”, justificava-se, parafraseando o seu psicanalista, e logo acrescentava: “O interdito é o melhor combustível da luxúria.” Nunca escondera de Miguel que, enquanto fluía (adorava aquela expressão) com ele, colecionava outros amantes: o professor que lhe dedicava os versos mais belos; o apresentador de televisão que fizera votos de ser eternamente solteiro e que, por isso, lhe trazia a leveza de que ela precisava; o encenador que reaparecera na sua vida como um cometa, oferecendo-lhe umas horas para matar a saudade e distraí-la da sua realidade; e sabe-se lá quem mais. A cada nova aventura, a cada nova cama onde se deitava, aprendia o prazer de se entregar ao presente sem pressa do amanhã, mas ia também deixando um rasto de destroços à sua passagem. Pobres vidas arrastadas de livre vontade para o vórtice dela.
Estava imprópria para consumo. Só um tolo aceitaria viver aquele caos, mas o juízo de pouco vale a quem adoece de paixão. Nos dias em que antecederam a viagem para Odeceixe, Miguel decidiu ignorar todos os avisos dos amigos mais próximos: Não vás por aí. Não abras essa porta. Não sonhes. Não arrisques. Não sintas. Não te metas nisso. Recua. Ainda vais a tempo. Não te apaixones. Olha que te magoas. Salva-te, antes que seja tarde.
Vai com cuidado, Miguel.
“Que se foda o cuidado!”, pensou. “De que vale a vida se não ousamos apaixonarmos?” Não ia desistir. O que sentia era maior do que qualquer razão, a recompensa valia todos os riscos. Estava disposto a saltar de um precipício, lançar-se em queda livre, entregar-se por inteiro, mesmo podendo acabar despedaçado. Preferia afogar-se nas águas agitadas de uma desilusão amorosa do que nunca se atrever a mergulhar naquela vertigem. Antes um coração que sangra do que um que nunca bateu de verdade.
No rádio do carro, a voz do António Variações indicava-lhe o caminho:
Vou viver
Até quando eu não sei Que me importa o que serei Quero é viver
Amanhã, espero sempre um amanhã E acredito que será Mais um prazer
E a vida é sempre uma curiosidade Que me desperta com a idade Interessa-me o que está para vir
A vida em mim é sempre uma certeza Que nasce da minha riqueza Do meu prazer em descobrir
Encontrar, renovar, vou fugir ou repetir
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990