Pedro decidiu regressar ao ensino superior depois de três anos de interregno. Viu todas as opções e decidiu que o melhor seria voltar a fazer o exame nacional de Português, essencial para o ingresso no curso que queria. Falou com professores seus amigos, amigos dos seus professores e todos o aconselharam a… Ser mediano. A mãe contava-me a história do exame de Português do Pedro e eu ia abrindo a boca de espanto.
Professor atrás de professor a aconselhar o rapaz a não dar respostas fora da caixa, mesmo que conseguisse justificar bem o seu argumento. “Não inventes”, é o resumo. Não ser crítico nem criativo porque, pasme-se, diziam os mesmos professores, não é isso que ensinamos aos alunos. Eles só sabem a matéria, não sabem ir além dela. “Não lêem, não vão ao cinema, a uma peça de teatro, não têm pensamento crítico porque não é isso que lhes ensinamos na escola”, disse uma professora amiga, responsável pelos exames no seu agrupamento de escolas, acrescentando, que um professor corrector quando vê algo fora da norma, fora dos critérios, fica com dúvidas e corta. “Está formatado”, disse.
O rapaz de 21 anos fez o seu exame, viu os critérios de correcção, confirmou que teria a nota máxima na gramática, mas que se “espalhara ao comprido” na interpretação. Ele tinha escrito coisas que não estavam contempladas, teria, no máximo 16 valores (de 0 e 20), talvez fosse suficiente para entrar. Fustigou-se: “Mas por que é que não me cingi ao básico? Eu sabia escrever o óbvio…” Andou angustiado até saber a nota: 19, o mesmo resultado que tivera três anos antes, quando decidira dar outro rumo à sua vida. Aparentemente, apanhou um corrector que não estava formatado. Gosto de imaginar que esse professor se sentiu bem, recompensado ao ler aquele exame, que pensou que vale a pena ensinar, que foi feliz!
Pedro faz parte dos cerca de 50.000 candidatos que souberam este fim-de-semana que entraram no ensino superior. E eu fico feliz por ele! Pelo Pedro, pela Inês, pelo João e pelo Afonso, os últimos da minha família alargada a ingressarem na sua derradeira etapa de estudos. A maioria tem o sentido crítico apurado. São jovens que viajam, aprenderam música, fazem desporto, têm actividade cultural, compram e lêem livros. Uns são católicos activos, outros são defensores dos direitos dos animais, todos são jovens envolvidos nas suas comunidades.
São jovens que vivem em bolhas de privilégio. E, o meu choque e lamento, depois de ouvir o relato do exame de Português do Pedro é que nem todos os rapazes e raparigas tenham acesso a estas coisas e que as escolas não estejam a cumprir a sua função de esbater essas desigualdades, que os professores digam abertamente que não trabalham o pensamento crítico mas vomitam matéria — é isso que o ministério lhes pede, escudam-se sempre. Lamento que os alunos carenciados estejam em queda na chegada ao superior, como analisa a jornalista Clara Viana, agudizando assim o fosso.
O ensino está assim a perder uma das suas funções — ser um elevador social — e está assim a contribuir para que tenhamos um país mais desigual, pondo em risco a saúde da nossa democracia. Queremos jovens amorfos, enterrados nas redes sociais a seguir alegados criminosos como Andrew Tate, que continua a ser investigado por tráfico humano e abuso sexual de menores, foi preso na quarta-feira, mas que continua a ser um sucesso na Internet; queremos que sigam grupos de extrema-direita e de extrema-esquerda, que vivem em mundo paralelos, onde o ódio domina as suas cabeças e acções?
Will Oremus, jornalista do O Washington Postreflecte sobre as notícias falsaso potencial da Inteligência Artificial (IA) e as mentiras proferidas tantas vezes por Trump que se tornam verdades para tantos que não têm pensamento crítico. No fim-de-semana passado, Trump publicou duas imagens na rede social que criou que foram geradas por IA, uma de Kamala Harris com um ecrã onde se via uma foice e um martelo, outra que reflectia o apoio de Taylor Swift ao candidato republicano. “O mundo da IA oferece a Trump e aos seus apoiantes uma realidade alternativa apelativa”, escreve o jornalista, que cita Mike Caulfield, especialista em literacia da informação: “A principal utilização da ‘desinformação’ não é, de todo, mudar as crenças de outras pessoas. Em vez disso, a grande maioria da desinformação é oferecida como um serviço para as pessoas manterem as suas crenças face a provas esmagadoras do contrário.”
Trump é até capaz de afirmar que foi o “presidente favorito” de Isabel II, quando os biógrafos da rainha escrevem o contrário, quando todos vimos a maneira como a destratou na sua última visita de Estado. Quanto a Taylor Swift, que terminou a sua digressão europeia com um lamento sobre o cancelamento dos seus concertos em Viena, Áustria, continua a não dar pistas sobre que candidato apoia às presidenciais norte-americanas. No final da convenção democrata, em Chicago, ouviram-se rumores sobre a sua presença ou a de Beyoncé, mas nenhuma apareceu, deixando o palco a Pink e à sua filha — o que nos faz pensar sobre privilégio e bebês nepoe questionar o talento dos filhos de pais cantores, actores, políticos, empresários… Nos faz pôr em causa a tão falada meritocracia.
Reunimos cinco momentos da convenção democrata que ficarão na memória e gostava de sublinhar alguns. O de Gus Walz, o filho do candidato a vice-presidente, de 17 anos e neurodivergente que expôs a suas emoções ao ouvir o pai em palco. De pé, emocionado e a bater palmas, repetia, “é o meu pai” — passaram vários dias, vi as imagens várias vezes e escrever esta frase, “é o meu pai”, continua a emocionar-me porque ninguém chamou a atenção do rapaz para “ser normal” e comportar-se como as “pessoas normais”, porque o seu gesto foi gratificante para muitos pais que têm filhos com os mesmo problemas que Gus, porque o rapaz se orgulha do seu pai e a sua família se orgulha dele, porque, mesmo que não tivesse problemas de saúde, não há que condenar quem expressa as suas emoções em público.
Gus foi uma inspiração para mim, como foram as sobrinhas netas de Kamala Harris, que foram ensinar a pronunciar o nome da candidata a presidente, para que não restem dúvidas, ou as sobrinhas e a enteada de Harris, Ella Emhoff, que pode ser a sua “arma secreta” junto das gerações mais novas, que falaram de uma mulher sensata e presente. Tal como aconteceu em 2016, com Hillary Clinton, sonhar com uma mulher presidente dos EUA, é sonhar com um mundo melhor para as raparigas, não só as racializadas, mas todas. Permite-nos sonhar com voos mais altos, para nós e para as nossas filhas, sonhar com um mundo melhor, onde as mulheres não sejam apagadas — como acontece no Afeganistão, em que a nova lei da moralidade tira a voz às mulheres, mesmo dentro das suas casas —, tapadas com panos em nome de Alá, e, no Ocidente, sem direitos sobre o seu corpo, em nome de Deus.
Olhar para aquelas meninas a observar a sua tia-avó em palco é antever mulheres com pensamento crítico, mulheres com voz, em vez de mulheres com bocas e corpos amordaçados. É sonhar com sororidade. Amanda Gorman, a jovem poeta que recitou na tomada de posse de Joe Biden, em 2021, também esteve em Chicago e leu um novo poema que diz assim: “Somos uma família, independentemente da religião, classe ou cor. / Porque o que define um patriota não é o nosso amor pela liberdade, mas o nosso amor uns pelos outros.”
Boa semana!