Águas partilhadas, protecção ambiental dividida: como manter os rios das nossas memórias felizes


Visualiza o rio mais próximo da tua casa, aquele onde costumavas ir com a tua família passar o dia ou onde ainda vais à noite com os teus amigos. O rio das tuas memórias felizes. Agora imagina que esse rio que sempre lá esteve desaparece de um dia para o outro, deixando um caminho residual, estéril e rochoso, como uma cicatriz imperecível na memória dessa corrente de vida.

“Se não fossem estabelecidos caudais ecológicos, não haveria rios neste momento”, afirma Santiago Martín Barajas (Teruel, 1962), engenheiro agrónomo e activista dos Ecologistas en Acción desde a sua criação em 1998. “Embora tenham sido insuficientes – porque são claramente insuficientes – pelo menos foram estabelecidos.”

Os caudais ecológicos foram introduzidos na Quadro da Água da União Europeia em 2000 para garantir o nível de água necessário para que o ecossistema aquático continue a desenvolver-se e a prestar os serviços de que dependemos. A Espanha incorporou-os na sua legislação em 2001 e Portugal em 2002.

Os caudais ecológicos devem ser sempre mantidos e respeitados, independentemente das circunstâncias, a fim de preservar os ecossistemas fluviais. Para Paulo Constantino (Entroncamento, 1970), fundador do movimento português em defesa do Tejo (ProTejo), não há desculpas para o incumprimento dos caudais ecológicos, mesmo em situações de seca, pois “se não há água nessa altura, não deve haver água para mais nada”.



Membros da ProTejo e da Viver Almonda o dia 29 de Junho durante a descida do rio Almonda, Portugal
Michele Curel

O acordo de cooperação para a protecção e utilização sustentável das águas das bacias hidrográficas Hispano-Portuguesas (Convenção de Albufeira), assinado por Espanha e Portugal em 1998, não inclui caudais ecológicos. Contempla apenas a definição do regime de caudais a posteriori e a melhoria da qualidade das águas superficiais para que atinjam um bom estado ou “bom potencial ecológico” – no caso daquelas com regimes hidrológicos modificados – de forma a evitar a sua degradação.

De uma pacata aldeia aninhada na Reserva da Biosfera Transfronteiriça do Tejo para a capital portuguesa, Amparo Sereno Rosado (Mata de Alcántara, 1972) atravessou a fronteira hispano-portuguesa – conhecida como A Raia – em 1998, seguindo o percurso do Tejo até à sua foz em Lisboa para fazer um mestrado em Direito Europeu e, posteriormente, um doutoramento em Direito do Ambiente.

Entre 1998 e 2000, “tudo foi negociado: a Convenção [de Albufeira], a Directiva-Quadro da Água e todas as alterações ocorridas na Lei da Água, espanhola e portuguesa”, oportunidade que aproveitou para assistir a congressos, seminários e conferências de imprensa sobre o tema e dialogar com os seus protagonistas, que a ajudaram a desvendar a complexidade das negociações de ambos os lados d’A Raia e as que decorriam em paralelo em Bruxelas.

A voz do rio

No caso das regiões hidrográficas luso-espanholas, a sua tese de doutoramento, Sereno estuda a legislação das bacias partilhadas da América do Norte e do norte da Europa para compreender o seu funcionamento em contraste com o da Península Ibérica, o que a levou a propor, numa das partes mais inovadoras da sua investigação, “alterar o modelo institucional” da Convenção de Albufeira.

Amparo Sereno, filha do Tejo, considera que “deveria haver uma comissão luso-espanhola no domínio da água, uma instituição forte, com um pressuposto de personalidade jurídica e um pressuposto autónomo”, porque actualmente, como estipulam os artigos 20.º, 21.º e 22.º, a composição dos órgãos comuns de cooperação –a Conferência das Partes e a Comissão para a Aplicação e Desenvolvimento da Convenção (CADC)– dependem dos governos de ambas as nações.

A entidade que propõe deve ser independente dos governos, “uma espécie de árbitro” ou “voz do rio” capaz de avaliar “os danos ambientais, não apenas económicos”, e de romper com a dinâmica de “inércia política” nos casos de incumprimento da Convenção, que normalmente são resolvidos diplomaticamente: “encobre-se um pouco perante a opinião pública e continua-se com a mesma coisa”.

Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2019, quando a ProTejo denunciou que os rios Sever e Ponsul, afluentes do Tejo, tinham secado por incumprimento de caudais durante o ano hidrológico 2018/2019; e o défice foi compensado com uma libertação excessiva de água de Cedillo nos últimos dois meses. Os ecossistemas fluviais sofrem “e isso nunca é avaliado”, lamenta Sereno, ninguém pergunta “quais foram os danos ambientais causados? É como se nada tivesse acontecido”.



A barragem de Cedillo, construída em 1976, forma um ângulo n’A Raia, as suas extremidades estão em Portugal e o centro em Espanha
Michele Curel

Pedro Cunha Serra presidiu ao Instituto Português da Água (Inag) e foi responsável pela elaboração da legislação hídrica e dos planos das bacias hidrográficas aquando das negociações do acordo hispano-luso e do Quadro da Água. Defende que “a questão climática e ambiental foi tida em conta”, sobretudo porque seriam incluídas na norma europeia que unificaria as acções de gestão da água.

É inegável que a distribuição das bacias foi baseada principalmente no uso hidroeléctrico de rios transfronteiriços, embora outras finalidades também tenham sido consideradas, como agricultura e indústria; é por isso que Martín Barajas garante que o Acordo de Albufeira “não foi feito para respeitar o ambiente”. “Foi feito para distribuir recursos, para fins produtivos.”

Cunha tem consciência de que “olhamos para estas questões com um sentido e uma perspectiva de defesa de valores ambientais que não existiam na altura” e está convicto de que chegou o momento de rever a Convenção, tanto mais que o próprio acordo deixa explícito que “os caudais ecológicos terão de ser adequadamente definidos” quando estiverem disponíveis os estudos necessários. E esses estudos necessários já estão mais do que disponíveis. Resta apenas decidir “e garantir que sejam respeitados”.

E é aqui que interviria o árbitro independente proposto por Sereno quem garantiria que sejam respeitados através da aplicação da Directiva de prevenção e reparação de danos ambientais, em vigor desde 2004, para governar “quem é responsável e quem é que tem de pagar?” “Não é preciso ir a tribunal, é [uma questão de] avaliar os danos e pedir indemnização.”

Rios partilhados: problemas e soluções

Nesta viagem por algumas povoações raianas do Douro, do Tejo e do Guadiana – os três maiores rios partilhados – naveguei nas suas águas juntamente com os seus habitantes para encontrar soluções para os problemas ambientais que afectam os rios partilhados e conhecer o grau de cooperação transfronteiriça em relação à protecção dos ecossistemas fluviais incluídos na Convenção de Albufeira.

Douro

À tua frente, o terceiro maior rio da Península Ibérica. O Douro que enriqueceu Zamora impulsionando com ímpeto os moinhos de água construídos na Idade Média é o mesmo que corre com avidez para as quedas dramáticas nas abruptas Arribes. O Douro que acolheu os artistas do Vale do Côa há 25.000 anos, é o que rega as vinhas que se estendem ao longo das encostas íngremes das suas riberas vinícolas e o que continua a atrair tantos viajantes e poetas ao melancólico Porto, onde se despede antes de se fundir com o Atlântico.

“Sou do rio”, revela Laura, a investigadora hispano-portuguesa que trabalha como guia e divulgadora dos projectos no cruzeiro pelas Arribes do Duero-Douro da Estação Biológica Internacional (EBI), sediada em Miranda do Douro.

Num piscar de olhos, o barco híbrido lança-se fora das suas amarras e entra silenciosamente nas falésias de cortar a respiração até 250 metros de altura esculpidas pelo Douro a partir da fenda da Península Ibérica. Trata-se de uma experiência-piloto de cooperação transfronteiriça numa “das mais belas e menos conhecidas paisagens da nossa península”, prossegue em discurso.



Vista de Espanha e do rio Douro em Portugal
Michele Curel

A pesquisa científica nas Arribes del Duero “acontece há quase 30 anos, mas a parte microbiológica foi incorporada há cerca de 4 anos”, explica Antonio Guillén Oterino (Zamora, 1961), director científico da EBI, que além de coordenar, realiza análises físico-químicas em amostras de água recolhidas no espaço transfronteiriço e estuda os microrganismos presentes na área, tais como “plâncton, fitoplâncton e neoplâncton”.

Enquanto o navio de investigação desliza pelas águas compartilhadas, a guia mostra a manga de plâncton que ela acabou de retirar do rio e prepara uma amostra para observar ao microscópio. Na tela aparecem copépodes, bosminas e daphnias, minúsculos organismos que são ampliados para que os participantes possam admirar o seu coração a bombear.

Desde que iniciaram o seu trabalho transfronteiriço, em 1994, têm procurado manter os seus princípios de independência política e económica, financiando todo o seu trabalho de investigação e conservação de habitats e espécies “através dos seus próprios projectos de ecoturismo”, como os navios hidrográficos, os seus cruzeiros ambientais no desfiladeiro internacional das Arribes del Duero e no Lago Sanabria.



Antonio Guillén recolhe uma amostra da água do Douro com uma manga de plâncton
Michele Curel

Depois de ouvir um fragmento do concerto natural dos pássaros ao vivo amplificado com um microfone sensível, é hora da observação livre do ambiente a partir do terraço do barco. “Não estamos num jardim zoológico”, explica Laura, por isso, se tiver sorte durante a sua visita, poderá avistar águias Bonelli, cegonhas-pretas, papagaios vermelhos ou grifos, e até lontras.

Os líquenes verdes ligados à ravina indicam que a rica biodiversidade deste espaço transfronteiriço respira ar puro, porque estes organismos são muito sensíveis à poluição atmosférica. Pelo contrário, as espécies aquáticas têm de se desenvolver em águas que “não estão no seu melhor estado de saúde”, porque o Douro está “eutrofizado, ou seja, muito afectado”, diz Guillén. E as causas devem ser procuradas do outro lado da fronteira.

“Ela é linda, entre dois rios!”, exclama Olvido enquanto explica a origem do topónimo da sua cidade a um grupo heterogéneo de amantes do vinho em frente a uma das adegas da sua família. Fermoselle, aquela com as “mil caves subterrâneas”, ergue-se no Douro e nas Tormes, a poucos quilómetros d’A Raia – para onde convergem – e é ladeada pela barragem da Bemposta e pela albufeira de Almendra, a mais alta de Espanha.



Laura transmitindo ao vivo os sons naturais das Arribes para os passageiros do cruzeiro
Michele Curel

Em 2001, o Plano de Gestão dos Recursos Naturais da Área Natural de Arribes del Duero foi publicado no Diário Oficial de Castela e Leão e o artigo 13º afirma que “o tratamento adequado deve ser alcançado o mais rapidamente possível para as descargas que são incorporadas nas águas, sejam elas de origem urbana, industrial, agrícola ou pecuária”, além de reduzir ou eliminar as causas de poluição dos rios.

Passaram-se 23 anos e José Manuel Pilo, presidente da Câmara Municipal de Fermoselle, continua a questionar-se “quando é que vai ser feito?”, porque o seu concelho de 1142 habitantes (INE, 2023) ainda não tem uma estação de tratamento e as suas águas residuais não tratadas “acabam nas águas internacionais do rio Douro”, que compõem a Reserva da Biosfera Transfronteiriça do Planalto Ibérico.



Vista de Portugal separado de Espanha pelo rio Douro, de Fermoselle
Michele Curel

Curiosamente, “do lado espanhol, nenhuma das aldeias que estão localizadas dentro do Parque Natural tem sistemas de tratamento de águas residuais e isso, logicamente, é uma deficiência que deve ser corrigida o mais rapidamente possível”, acrescenta. Até porque o Plano de Gestão contempla ainda que se procure a purificação das águas, incluindo o saneamento dos rios secundários, de modo a que afete “todas as bacias correspondentes”.

Tendo em conta que tal ainda não foi realizado, a encantadora vila de Fermoselle tornou-se um “foco de insalubridade para toda a zona e para as aldeias portuguesas que utilizam água para consumo”, uma ação que o autarca descreve como “denunciável”, uma vez que coloca em causa “a nossa saúde e a saúde conjunta da Península”.

Poluição difusa no Douro

Para além do grave problema da descarga de águas residuais não tratadas em rios transfronteiriços, existe também poluição difusa, descrita pela Agência Europeia do Ambiente (AEA) como a proveniente de várias fontes “tais como nutrientes e pesticidas provenientes de actividades agrícolas e poluentes libertados pela indústria para a atmosfera que depois caem de novo na terra e no mar”.

Este é “o maior problema com a água na Península Ibérica”, diz Guillén, porque os campos de cultivo não conseguem assimilar o excesso de fertilizantes com nitratos e fósforo, que depois de drenados “acabam nas albufeiras, acabam nos rios e acabam no Douro”, fertilizando as massas de água e provocando o aparecimento de microrganismos que podem “turvar a água ou dar-lhe uma cor esverdeada ou castanha”.



José Manuel Pilo, presidente da Câmara Municipal de Fermoselle, na barragem de Almendra
Michele Curel

Esta proliferação do fitoplâncton pode ser acompanhada por cianobactérias, espécies extremamente tóxicas para os seres humanos e outros organismos vertebrados, como peixes, anfíbios e aves. Os resultados de inúmeros estudos experimentais com animais de laboratório, publicados no guia Toxic Cyanobacteria in Water da OMS , mostram que “algumas cianotoxinas são altamente neurotóxicas e outras podem danificar o fígado, rins ou outros órgãos quando ingeridas”.

Martín Barajas diz muito claramente que isto acontece “porque há uma absoluta falta de controlo na gestão da água”, especialmente em relação à agricultura, pela “atitude produtivista do Ministério da Agricultura e de todos os governos regionais”. Em várias ocasiões foram encontrados pesticidas que “foram proibidos em Espanha há 15 anos”, como os encontrados nos parques nacionais de Doñana e Tablas de Daimiel, segundo um estudo do Conselho Nacional de Investigação espanhol (CSIC) publicado na revista Chemosphere.

O excesso de pesticidas fez com que, no Verão passado, a água da albufeira de Almendra, a terceira maior de Espanha, ficasse imprópria para consumo humano, deixando 161 aldeias das províncias de Salamanca e Zamora sem abastecimento “devido a teores de metolacloro superiores aos fixados pelo recente Decreto Real sobre água potável”, como pode ser lido no Relatório de Situação de Seca e Escassez de Setembro de 2023.

Guillén manifesta a sua preocupação porque em várias ocasiões foram encontradas duas espécies de cianobactérias no reservatório (Dolichospermum flos-aquae e Microcystis aeruginosa) e a sua floração é um fenómeno sazonal: “estas toxinas não podem ser eliminadas nas estações de tratamento de água potável”.



A parte frontal da barragem de Almendra tem apenas uma tubagem através da qual a água passa para o rio Tormes, muitos se perguntam se esta mantém o seu caudal ecológico
Michele Curel

Por isso, a solução para a poluição difusa passa por “um trabalho de educação muito importante de todos os agricultores ou um controlo mais exigente para os fazer compreender que “se sujarmos a água, vamos todos ser prejudicados” porque é um bem para todos, e “se poluir a água do meu neto, o que é que lhe vou dar para beber?”.

Filtros verdes, a alternativa de purificação baseada na natureza

As plantas fazem mais por ti do que pensas. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, as plantas purificam 98% do ar que respiramos e são a base do nosso sustento: 80% dos alimentos que ingerimos dependem delas. Como se não bastasse, são um refúgio para a biodiversidade, contribuem para mitigar as alterações climáticas e, além disso, podem ser a solução para reduzir a poluição difusa nos nossos rios.

Apesar de existirem modelos e experiências a nível europeu e nacional, “parece que as administrações não são permeáveis, não conhecem realmente estas experiências e, por isso, é difícil implementar o que não se sabe”, diz Alejandro Cano, presidente da Plataforma de Toledo em Defesa do Tejo. Guillén concorda, argumentando que “quando há falta de informação, não há consciência do problema, não há compromisso das pessoas e não há vontade dos políticos, porque há muita ignorância”.



O rio Tormes represado pela barragem de Almendra forma o “Mar de Castela” entre as províncias de Salamanca e Zamora
Michele Curel

É o caso da “estação de tratamento biológico” do município de Fabara, em Saragoça, em funcionamento desde 2006. “É o paradigma do tratamento através de plantas”, reconhece Cano, dado que as vantagens em relação às convencionais são maiores, consegue: reduzir a carga poluente quase na sua totalidade, valorizar o ecossistema fluvial local e requer “muito pouco dinheiro, muito pouco orçamento, mas um pouco mais de espaço.” Exactamente, 235 mil euros e proporcionando os mesmos benefícios, em oposição aos 2.400.000 euros que teria custado a estação de tratamento convencional.

A EBI trabalha no projecto Filtros Verdes há pelo menos uma década. Os seus cientistas estudam o comportamento e a capacidade das plantas aquáticas para converter o azoto das águas residuais em oxigénio em zonas fronteiriças com um objectivo claro: desdobrar esta alternativa de purificação natural para pequenos municípios em áreas protegidas.



António Guillén observa amostras de plâncton no laboratório da EBI, Miranda do Douro
Michele Curel

Os testes realizados mostram que a capacidade de absorção de nutrientes é eficaz “quando os volumes de água a tratar não são excessivamente grandes”, confirma Guillén, pelo que está convencido de que poderia ser implementada com sucesso em “pequenas populações como as que estão espalhadas pela bacia do Douro, em todas as Arribas”.

Tejo

O rio mais longo da Península molda e dá vida às Reservas da Biosfera de Monfragüe e à Internacional que leva os seus nomes. É também uma ponte, ligando as cidades Património Mundial de Toledo e Lisboa e criando um corredor natural e cultural de Madrid para o Atlântico e vice-versa. Apesar da sua importância e das figuras de protecção ambiental que se sobrepõem à extensão do seu percurso, é provavelmente o mais maltratado.

“As margens do Tejo foram o meu local de lazer”, recorda com saudade Alejandro Cano Saavedra, presidente da Plataforma de Toledo em Defesa do Tejo. Quando era pequeno, “descia com o meu pai ao rio para tomar banho” nas águas do Tejo em Aranjuez e, depois de se mudar aos 8 anos, em Toledo. Ali acompanhava os irmãos na pesca, porque além do facto de “o peixe que se obtinha do rio Tejo ser absolutamente comestível”, havia uma variedade de espécies, incluindo caranguejos e moluscos, mas, para seu pesar, “todas as espécies desapareceram”.

Alejandro Cano sempre esteve ligado ao Tejo e pôde conhecê-lo em melhores circunstâncias, quando era “um rio dinâmico, um rio que tinha as suas cheias na Primavera e no Inverno, que tinha a sua grande baixa de água no Verão, que até permitia atravessá-lo – quase, quase – a pé”, um rio que chegou a ter praias fluviais como se pode ver nos instantâneos que guarda como relíquia. Mas tudo mudou há 52 anos.

Entre os “Documentos Interessantes” do Arquivo Municipal de Toledo encontra-se o comunicado do Governo Civil da cidade de 19 de Junho de 1972, no qual é retransmitido o despacho da Direcção-Geral da Saúde sobre a proibição de “tomar banho no curso do rio por aquele Município com a fixação de sinais bem visíveis” devido ao facto de ter sido comprovada “a contaminação das águas do rio Tejo”. E a proibição ainda está em vigor.



Alejandro Cano destaca o estado do rio Tejo, em Toledo, onde sobrevive uma das doze espécies de peixes que nadavam nas suas águas
Michele Curel

Quando chega o Verão, quem desconhece a proibição fica tentado a refrescar-se, o que pode levar a um grave problema de saúde e até à morte. Porque quando se perfuram os bolsões de metano no fundo, “o volume que o metano ocupa é ocupado por si, o metano respira-o”.

Segundo Cano, o problema da poluição remonta aos anos sessenta e está associado ao “grande desenvolvimento da zona madrilena”, uma vez que nessa altura “não existiam estações de tratamento (ou eram poucas) e a água não tratada era descarregada nos rios Jarama e Guadarrama”, afluentes do Tejo, e denuncia que “ainda há muitas aldeias que descarregam água directamente nas ribeiras, num canal natural”.

O polémico transvase Tejo-Segura agravou a situação em 1979, uma vez que o seu funcionamento significou a redução da quantidade de água natural que provém das cabeceiras do Tejo “para um sexto, com o qual a concentração de poluição se tornou ainda mais forte”, fazendo com que o Tejo continuasse a ser “um cadáver hidrológico”.

Apesar de todos os danos ambientais perpetrados contra o Tejo, ainda há esperança: é possível inverter a situação e poder voltar a tomar banho no Tejo dentro de quatro ou cinco anos, embora tudo “dependa da vontade política para o fazer”, garante Cano.



O rio Tejo no seu troço internacional a partir de Cedillo, Espanha
Michele Curel

Do outro lado, onde o Tajo passa a chamar-se Tejo, o movimento de cidadãos presidido por Constantino conseguiu juntar todas as “peças do puzzle” necessárias para apresentar uma “queixa significativa” sobre o incumprimento dos caudais ecológicos por Espanha e Portugal, enviada à Comissão Europeia em Março de 2024.

Na queixa, a ProTejo classifica os impactos negativos devido à “não implementação de um regime de caudais ecológicos”, inclui provas relativas à deterioração da qualidade da água proveniente de Espanha e argumenta que a Convenção de Albufeira viola o Quadro da Água por várias razões, entre as quais: a ausência de caudais mínimos no Tejo, a indeterminação de caudais mínimos ou ecológicos em períodos de escassez de água e a falta de coordenação entre os Estados para a elaboração de um único plano internacional de bacias.

Destaca-se a acusação de desperdício de “fundos públicos, nacionais e comunitários” e o agravamento do “já precário estado ecológico” da bacia do Tejo contra o Governo português. O programa “Soluções para a Resiliência Hídrica do Tejo“, apresentado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) em Março de 2023, inclui a construção da barragem do Alvito e o transvase do túnel do Cabril para a produção de energia hidroeléctrica, reserva de água, dessalinização e expansão do regadio nas regiões do Ribatejo e Oeste.

ProTejo salienta que estas duas infra-estruturas hidráulicas “vão servir a estratégia do “Projecto Tejo“, com o qual se pretende tornar o Tejo navegável de Abrantes a Vila Franca de Xira – nas imediações da Reserva Natural do Estuário do Tejo – estando para o efeito prevista a construção de seis obstáculos fluviais (4 novas barragens e 2 novas albufeiras), “fragmentar os últimos 127 quilómetros de rio Tejo livre e selvagem a cada 20 quilómetros”, com um investimento de 4500 milhões de euros.

Hoje, “do ponto de vista energético, acredito que [o reservatório] é uma tecnologia obsoleta, porque há muitas outras formas de produzir energia que não têm tanto impacto”, sublinha Sereno, em linha com a estratégia de melhoria das instalações hidroeléctricas existentes da UE para reduzir o seu impacto ambiental e favorecer a produção hidroeléctrica sustentável com o objectivo de se tornar o primeiro continente neutro em termos climáticos até 2050.

Renaturalização para melhorar a qualidade de vida dos rios ibéricos

Santiago Martín é activo no ambientalismo desde os 17 anos, “e eu tenho 62. Então prescreveu”, acrescenta orgulhoso. O seu amor pela natureza surgiu muito cedo, quando os pais o levavam ao campo aos domingos para desfrutar da natureza, daí “sentir necessidade de a defender” quando está a ser destruída.

Depois de quatro décadas a nadar contra a corrente, embarca como chefe de projectos de renaturalização dos Ecologistas en Acción e recorda a experiência do rio Manzanares – um afluente do Jarama que atravessa Madrid – “como muito positiva” tanto para o interesse ambiental como para o interesse social inerente ao projecto.



Barragem no Rio Tejo, Toledo
Michele Curel

Se pararmos para pensar, “o rio Manzanares é visto quase diariamente, durante boa parte da sua vida, por dezenas de milhares de pessoas”. “Então, se você melhora as condições do rio, você está contribuindo para melhorar a qualidade de vida dele.”

A proposta elaborada pela Comissão da Água dos Ecologistas en Acción foi apresentada à Câmara Municipal de Madrid no início de 2016; em Maio, as sete barragens que obstruíam o rio no seu troço urbano de 7,5 quilómetros foram definitivamente abertas para que este pudesse recuperar a sua função de corredor fluvial e, a partir do Verão, não só houve um aumento da presença de peixes e aves, como as primeiras árvores começaram a crescer espontaneamente.

Em 2018, “ninguém conhecia o rio por causa de como era”, diz Martín Barajas com satisfação, pois “é a prova de como a natureza, se deixarmos de a esmagar, faz o seu próprio caminho”. Algumas dessas árvores atingem agora os 20 metros de altura, as espécies autóctones plantadas abundam nas margens e é possível avistar quase uma centena de aves e até lontras: “Recomendo que dê um passeio e veja”.

Desde então, a confederação ambiental preparou projectos de renaturalização para “mais 22 rios em todo o país”, alguns dos quais estão em execução, como o Rio de Oro em Melilla ou o troço de Manzanares em Getafe, enquanto as propostas para a renaturalização dos troços urbanos canalizados em betão dos rios Zapardiel, em Medina del Campo e Albarregas em Mérida, não conseguiu ultrapassar os obstáculos políticos.

Guadiana, símbolo de união ou disputa?

O Guadiana formou a monumental Augusta Emerita, capital da província romana da Lusitânia, a que a actual Lisboa pertencia. Ao passar por Badajoz, o “rio que aparece e desaparece” decide dirigir-se para sul, traçando uma Raia líquida e fluida que portugueses e espanhóis atravessam com engenho quando necessário. Na ausência de pontes fixas, efémeras como a que liga Alcoutim e Sanlúcar de Guadiana. Na ausência de sustento, barcos para realizar contrabando ao menor descuido das guardas. Na ausência de água, Alqueva, a maior albufeira da Europa, que transborda na fronteira irrigando a região de Olivença. O Guadiana, símbolo de união ou disputa?

Surtos de plantas aquáticas exóticas invasoras afectam o Guadiana há mais de uma década. O camalote foi detectado pela primeira vez em 2006 e passou a cobrir trechos do rio de margem a margem, sufocando gradualmente os peixes devido ao consumo excessivo de oxigénio na água e desencadeando um processo de putrefacção prejudicial ao ecossistema fluvial e aos seres humanos.



Vista do rio Guadiana a partir do Pomarão, Portugal
Michele Curel

A luta contra o camalote levou à constituição da Associação Cidadã Salve o Guadiana em 2016. Segundo o seu presidente, Juan Fernando Delgado Cortijo, o trabalho conjunto com Yolanda García Seco, a delegada do Governo, e a Confederação Hidrográfica do Guadiana (CHG) para implementar o Plano de Choque, surtiram efeito: em 2020 o MITECO confirmou que o camalote estava controlado em todos os troços do rio e o trabalho de vigilância e alerta precoce vai continuar até ser erradicado.

Entretanto, em Maio detectaram “outra planta invasora, a Ludwigia, outra planta enraizada no fundo de rios e albufeiras” e a expansão do nenúfar mexicano – principalmente no troço urbano do Guadiana em Badajoz e arredores – “não está a ser combatida”, diz Delgado.

Salvemos el Guadiana deixa claro que, apesar de estarem a ser realizadas obras para a erradicação desta última, é “muito difícil” porque “vai continuar a proliferar nos seis anos de margem que foram dados para supostamente realizar uma dragagem selectiva da área”. Esta acção específica é rejeitada pelas ONG ambientais da Extremadura e pelos Ecologistas en Acción, considerando que, sem um plano abrangente de recuperação ambiental de todo o ecossistema fluvial, terá um “efeito placebo” e o problema não será resolvido.



Depois de várias tentativas falhadas de reconstrução, as ruínas da ponte de Ayuda ainda se mantêm sobre o troço fronteiriço do Guadiana
Michele Curel

As plantas invasoras não são a única frente aberta no Guadiana. Além da poluição difusa que contribui para a propagação destas espécies exóticas, a Salvemos el Guadiana contabiliza “cerca de 1000 queixas” ao Serviço de Protecção da Natureza (Seprona), ao CHG e às autarquias ribeirinhas por “despejo descontrolado de resíduos sólidos nas margens dos rios Gévora e Guadiana, detritos, plásticos, pneus, fibrocimentos e todo o tipo de resíduos”, segundo Delgado.

Remover barreiras físicas (e mentais) para salvar rios

Depois de uma tarde de pesca no Golfo de Nápoles quando tinha 11 anos, Lorenzo Quaglietta (Nápoles, 1976) folheou uma revista de pesca na casa do tio paterno, descobriu ecossistemas fluviais e apaixonou-se por trutas e lontras. Graças a estas leituras, aprendeu como a demolição de barragens era importante para a sua conservação. “Pareceu-me totalmente utópico fazê-lo aqui, no sul de Itália”, pensava sempre que lia artigos sobre o movimento de remoção de barragens, que ganhava força nos Estados Unidos na altura.

Três décadas mais tarde, depois de ter apresentado a sua tese de doutoramento sobre ecologia de lontras e de se ter especializado em mamíferos semiaquáticos – mais concretamente na toupeira-da-água-dos-pirenéus –, a Associação Natureza Portugal (ANP), subsidiária portuguesa da WWF, contratou Quaglietta como Consultor da Água e propôs-lhe que dirigisse o projecto de Eliminação de Barreiras Fluviais.

Desde 2021 tem tido “a oportunidade de iniciar este movimento em Portugal”, diz Quaglietta com um brilho nos olhos, conseguindo a primeira incursão do género no país em Março de 2023 com a remoção da barragem de Galaxes, na bacia do Guadiana. O Programa Europeu Open Rivers financiou também a sua segunda acção, que será realizada em Setembro na ribeira do Perofilho, na bacia do Tejo.

“Portugal, comparado com Espanha, é muito atrasado”, reconhece Quaglietta, e neste caso são necessárias comparações, por mais odiosas que sejam. Os números do relatório Dam Removal Progress 2023, publicado pela World Fish Migration Foundation, são indiscutíveis: Espanha está em segundo lugar no ranking europeu, com 95 obstáculos demolidos em comparação com os dois de Portugal. E em 2022, a Espanha ficou em primeiro lugar, com 133 barreiras fluviais removidas.



Moinho abandonado no rio Almonda
Michele Curel

As causas da diferença abismal entre Espanha e Portugal se encontram na legislação de ambos os países. Especificamente, entre as obrigações dos proprietários de barreiras fluviais em relação ao desmantelamento.

O Real Decreto 264/2021, determina que os proprietários terão de as demolir e são obrigados “a restaurar a área do canal em que se situa, e a sua envolvente, ao seu estado natural e, se for caso disso, à sua restauração hidrológica florestal”. No entanto, tal não está previsto na legislação portuguesa.

“No fundo, estamos a fazer o trabalho que o Governo deve fazer”, reconhece Quaglietta, porque estão a ajudá-lo a “alinhar-se com as directivas europeias”. O processo de localizar os detentores e convencê-los a remover o obstáculo é “muito trabalhoso” em Portugal e isto porque muitos portugueses “não percebem porque é que alguém quer remover uma barreira que está lá há décadas e até precisava de dinheiro para ser construída”, descreve Quaglietta, cuja equipa costuma dizer que removem “primeiro barreiras mentais e depois barreiras físicas nos rios”.

Cooperação transfronteiriça para a protecção dos rios comuns

Espanha e Portugal, para além da Península e dos rios, partilham história, cultura, costumes e tradições. Partilham montanhas e pastagens, práticas agrícolas e até a dieta mediterrânica. Não compartilham uma língua, mas quando há uma vontade entre os seus falantes, o “portunhol” é inteligível. Então, porque é que falta cooperação transfronteiriça para a protecção do ambiente?

Ou “praticamente inexistente”, como define Martín Barajas, também “por vontade mútua”. Há interesse. As associações ambientais entrevistadas de ambos os lados da Raya confirmam isso e afirmam estar em contacto. Mas há algo errado. Após as reuniões e encontros, o que foi assinado não se concretiza, por vezes por inacção ou obstáculos políticos. E apesar de se juntarem aos eventos organizados pelos seus vizinhos para reivindicar a conservação dos rios partilhados e dos seus ecossistemas, a participação dos cidadãos é mínima.



Troço internacional do Douro desnaturado na barragem da Bemposta, pintado de amarelo
Michele Curel

Com excepção da EBI – cuja missão desde a sua constituição tem sido o estudo e conservação dos espaços naturais transfronteiriços e dos seus ecossistemas – as restantes associações focadas no desenvolvimento rural contactadas cooperam em momentos específicos para desenvolver e executar projectos de vocação turística que favoreçam as suas regiões, como os financiados pelo FEDER.

Um envolvimento “mais profundo e solidário” das autoridades governamentais, como afirma Cano, é essencial para garantir a “protecção” e não apenas o “uso” das águas estipulado na Parte III da Convenção de Albufeira e nos artigos 3.º e 4.º do Quadro da Água.

A primeira refere-se à inclusão numa “demarcação hidrográfica internacional” de bacias que cobrem “o território de mais do que um Estado-Membro”, algo que não acontece entre Espanha e Portugal, apesar de partilharem cinco: Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana. É ilógico, segundo Cano, “que a parte final da bacia tenha os seus planos já elaborados sem saber em que condições o país anterior vai tratar a bacia”. O capítulo seguinte estabelece a obrigação de os Estados-Membros «protegerem, melhorarem e regenerarem todas as massas de águas superficiais [e subterrâneas]». A este respeito, parece que ainda há muito a fazer.

Virá o dia em que a cooperação na Península Ibérica deixará de ser uma mera declaração de intenções e se materializará em acções de protecção dos nossos rios comuns e dos seus afluentes. Por enquanto, devemos combater a ineficácia política sendo proactivos, dialogando com nossos vizinhos e buscando soluções – realistas e ao nosso alcance – para restaurar os ecossistemas aquáticos de ambos os lados d’A Raia.

Só então, quando os rios partilhados deixarem de estar fragmentados e poluídos, recuperarão o seu estatuto de corredores ecológicos e voltarão a ser uma fonte de vida e prazer para si e para os seus descendentes.


Esta série transfronteiriça de reportagens ambientais aprofundadas foi produzida pelos jornalistas Luzia Lambuça (Parte I), Daniel Borges (Parte II) e Emerson Mendoza Ayala (Parte III) e pela fotógrafa Michele Curel, com o apoio do JournalismFund Europe.









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