Ardeu-lhe quase toda a vinha, mas João ainda tem esperança que as videiras sobrevivam


O cenário com que somos confrontados nas proximidades da propriedade de João Tavares de Pina, a Quinta da Boavista, em Penalva do Castelo, no Dão, não deixava margem para dúvidas: as chamas foram implacáveis deixando tudo ali à volta pintado de negro. No passado dia 16, o fogo atingiu 12 dos 15 hectares de vinha que ali possui, incluindo um importante “banco genético” com castas antigas da região, faltava-lhe vindimar cerca de 30% da uva. João ainda não consegue fazer as contas aos prejuízos, uma vez que é preciso esperar para ver em que condições ficaram as uvas que estavam por apanhar, diz, assim como perceber o que acontecerá às próprias videiras. O produtor espera que consigam sobreviver e viverá os próximos meses nessa ansiedade.

“É necessário ver se a planta continua a ter o sistema vascular activo para poder sobreviver”, explicou ao PÚBLICO. Ao longo de quase uma hora, enquanto nos guiava pela sua propriedade, esta terça-feira, nem por um minuto João Tavares de Pina procurou abrigar-se da chuva. Afinal de contas, toda aquela água – mais a que era esperada para os dias seguintes – poderia ajudar a amenizar-lhe a desgraça.

O produtor não esconde a revolta por ter visto os bombeiros ficarem “por mais de uma hora” impedidos de chegar à sua quinta por causa do estado em que estavam os terrenos circundantes. São “donos sedentários, gente que não quer saber nada disto”, acusa, sem afastar a possibilidade de responsabilizar criminalmente quem deixou os terrenos por limpar, e com “eucaliptos e mimosas por todo o lado”. “É inadmissível eu ter um acesso para a quinta que não pôde ser usado em termo oportuno”, criticou.



João Tavares de Pina, produtor de vinho no Dão, esteve a combater as chamas e a salvar animais, depois do incêndio de 16 de Setembro ficou com a roupa que tinha no corpo
Nelson Garrido


No meio da desgraça — além das vinhas, e não obstante todos os esforços para conter as chamas, o fogo acabou por atingir também a casa de família, que ficou inabitável salvou-se a adega, o que lhe dá reforçado alento num futuro que permita retomar a produção de vinho. “O fogo andava por todo o lado. Estávamos a tentar salvar o olival, lá em baixo, mas o fogo deu a volta e passou-nos para as costas, para a vinha e para o lado da casa”, conta.

João “tinha ainda 30% da vindima por fazer”, preparava-se para retomar a apanha das uvas no dia 18. “Era a uva que eu utilizo para fazer os meus vinhos mais complexos, os vinhos de guarda. Touriga nacional, Mencia [Jaen]Alvarelhão e ainda um pouco de Baga e um pouco de Alfrocheiro.” Resta, agora, ver quais e quantos cachos se podem ainda aproveitar. “Estou à espera destes três dias de chuva para lavar a uva e tentar, de alguma forma, remover aquelas fuligens e eventuais aromas que possam ter aderido à película”, enquadrou.

Banco genético também foi atingido

Entre os 12 hectares de vinha atingidos pelo fogo “só se safou a plantação nova” incluem-se duas parcelas, com cerca de 6000 metros, que se revestem de um cariz muito especial. É lá que João Tavares de Pina tem o seu “banco genético”, com “praticamente todas as variedades que eram utilizadas no passado na região do Dão”.

Com a “globalização e com restruturação que foi feita a partir dos anos 90, muito orientada pelas grandes corporações”, o encepamento do Dão ficou limitado “a meia dúzia de castas”. João Tavares de Pina está a tentar contrariar esse cenário, cultivando variedades como “o Luzidio, o Cidreiro, o Moreto e o Rabo de Ovelha”. “A ideia depois era eu ter noção daquelas que teriam melhor capacidade de adaptação às condições actuais”, explica.

Em termos práticos, o produtor ainda precisa de aguardar para perceber qual foi a dimensão do estrago nas vinhas. “Desde agora e até à normal época do cair da folha, as plantas estariam a constituir reservas, a armazenar açúcares, para depois terem energia para rebentarem no ano seguinte. Portanto, vamos ter plantas muito debilitadas e com muito pouca energia guardada para poder depois rebentar”, começa por notar. “Por outro lado, temos que ver até que ponto a planta continua a ter o sistema vascular ainda activo para poder sobreviver”, acrescentou.

Vão ser, com certeza, meses de muita ansiedade, com os olhos postos nas vinhas, mas João Tavares de Pina não está disposto a desistir. “Muito menos agora, em que começo a ter algum reconhecimento no mercado”, assevera. A sua aposta, contextualiza, é fazer vinhos “com um carácter diferente”. “Os vinhos que encontramos na região, ressalvando meia dúzia de excepções de alguns produtores que sempre produziram vinhos com uma identidade vincada, não passam de um caldeirão em que é tudo igual. É assim que o mercado quer. Fazem vinho ao gosto do consumidor, e o gosto do consumidor padrão é um gosto básico, é um gosto adocicado, redondinho, e nós não vamos por aí”, argumenta o vitivinicultor que na vinha também se orgulha de trabalhar de forma diferente.

“Uso rosmaninho, junto à planta, e tomilho, segurelha e menta, nas linhas. Embora haja aí um discurso a dizer que o melhor talvez seja usarmos os herbicidas, eu funciono de forma regenerativa”, apontou aquando da visita do PÚBLICO, garantindo que desta forma consegue “um solo vivo, activo e tenho território. Não há território se não houver rizosfera”, referiu.



João Tavares de Pina vai passar os próximos meses na ansiedade de olhar a vinha e perceber se as videiras sobrevivem ou não
Nelson Garrido


É preciso ter “lucidez” nos apoios

Assim que foi conhecida a perda deste produtor do Dão João Tavares de Pina está há cerca de 30 anos na região, mas a sua ligação ao mundo do vinho já vem de 1980 gerou-se uma onda de solidariedade. “Da parte da distribuição, dos clientes finais, dos amigos. Nunca pensei que atingisse esta dimensão”, enumerou, agradecendo a todos eles. Uma ajuda que está a fazer toda a diferença, mas que, ainda assim, será insuficiente para cobrir todos os prejuízos.

O produtor aguarda pelos apoios prometidos pelo Governo para as vítimas dos incêndios, esperando que haja “lucidez”. “Vão dar-me o dinheiro que eu preciso para reconstruir isto ou vão-me dizer que eu tenho capacidade para me candidatar a um VITIS para poder fazer a replantação? Essa possibilidade de me candidatar a um VITIS tenho-a sempre desde que arranque a vinha”, observa.

“E pagarem a uva a 35 ou 40 cêntimos? O Estado reporta-se sempre aos valores do despejo que é feito pelas adegas cooperativas, pelos valores praticados no Douro, onde andam a matar a galinha dos ovos de ouro e a comer o sangue e a seiva aos lavradores, mas o custo de produção biológico, o custo de produção de uma uva orgânica, pode chegar a um euro”, vinca.



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