Bruno Lage no Benfica, uma escolha que não edifica nem destrói


“Coisa que não edifica nem destrói (…) que não inflama nem regala” é uma frase de Machado de Assis, colocada por Ricardo Araújo Pereira na esfera da literatura portuguesa, e que não andará longe daquilo que os benfiquistas sentem, por estes dias, com a escolha de Bruno Lage para novo treinador da equipa masculina de futebol.

O técnico foi apresentado nesta quinta-feira como o novo líder da equipa e poderá ser uma escolha que não edifica nem destrói, que não inflama nem regala. Bruno Lage é uma escolha que não desagrada por ser um incompetente, mas também não empolga por ser um mágico dos bancos. Para uns, é uma delas. Para outros, é a outra. Para outros ainda pode não ser nenhuma delas. E Lage fez por estar neste limbo.

Não é fácil definir a carreira de treinador de Bruno Lage. Por isso, vamos a factos. Bruno Lage é o homem que levou o Benfica ao título em 2018/19, recuperando de sete pontos de desvantagem. Mas também é o homem que levou o Benfica ao fracasso em 2019/20, perdendo os mesmos sete pontos de vantagem, numa fase em que os “encarnados” já andavam a namorar Jorge Jesus. E quem tem boa memória lembra-se do Lage dos sete perdidos, mas também dos sete recuperados.

Mas há mais factos. Um deles diz-nos que Lage não teve nenhum trabalho verdadeiramente competente no pós-Benfica. Outro diz-nos que foi ele quem apostou em jovens jogadores, nomeadamente João Félix, mostrando estar alinhado com o preceito do clube a nível de estratégia desportiva.

Criou o miúdo ou o miúdo criou-o a ele?

A 3 de Janeiro de 2019, quando foi chamado a assumir uma equipa destroçada nas mãos de Rui Vitória, Lage teve de ir de carro até ao Seixal já depois do sol-posto.

No caminho até lá, disse ter “tomado a decisão de apostar no miúdo”. É pura verdade ou embelezamento da narrativa? Nunca saberemos, mas, para o caso, também não é relevante. O que importa é que apostou em João Félix e esse é um momento que ajuda a definir a carreira de Bruno Lage.

Por um lado, quem quer suportar a competência do técnico pode dizer que só alguém de alto nível teria a coragem, a sagacidade e o engenho de lançar Félix numa equipa destroçada, rodear o craque e criar condições para que ele ajudasse a equipa a ir buscar sete pontos e ser campeã.

Na altura, foi Félix quem fez funcionar um 4x4x2 que precisava de alguém capaz de jogar entre linhas e ver o jogo de frente, tendo também chegada à área, presença na zona de definição – e não apenas na criação – e capacidade de finalização.

Félix foi tudo isso e, num sistema tão especial como o 4x4x2, o “falso nove”, a par do segundo médio, definem a “cola” que existe ou não na dinâmica colectiva. E Lage descobriu-a.

Mas há outra forma de ver a coisa. É que Lage, no ano seguinte, manteve o seu 4x4x2, mas sem Félix, que foi vendido por um balúrdio. Raúl de Tomás foi aposta nesse lugar, mas Lage desistiu cedo. Chiquinho andou por lá, mas assim-assim. Rafa também por lá passou, mas Lage gostava mais dele a partir da ala. E Taarabt pisou esses terrenos com alguns bons pormenores, mas sem a presença na área e a finalização que se pediam.

Nenhum foi Félix e isso permite perguntar: foi Lage quem criou João Félix e aquele grande Benfica ou foi Félix quem criou Lage e aquele grande Benfica?

Saiu com cotação em baixa

Esta pergunta não terá, para já, resposta definitiva – e talvez venha a ter nos próximos meses, consoante o que fizer Lage no banco “encarnado”.

Mas as aventuras pós-Benfica não são um bom cartão-de-visita. No Wolverhampton, primeiro, e no Botafogo, depois, Bruno Lage não pegou. Foi despedido de ambos os clubes e isso não é mais do que o repisar das memórias daquele último Benfica de Lage. E não é coisa bonita de se lembrar.

Quando foi despedido, Lage não só já tinha perdido sete pontos de vantagem como deixou a equipa seis atrás. Foram 13 pontos perdidos, com duas vitórias nos últimos 13 jogos, algo que começou na derrota no Dragão, por 3-2.

Na altura, a equipa já mostrava problemas defensivos e ofensivos profundos, mas eles foram aumentando semana após semana. Na defesa, havia uma incapacidade gritante de trabalhar as bolas paradas – que são muitas vezes medidoras do “dedo de treinador”. No final do reinado de Lage, a equipa levava nove golos sofridos de bola parada – e cinco dos últimos sete.

Mostrava ainda uma incapacidade evidente de segurar vantagens, algo que geralmente também indicia alguma incapacidade do líder de dotar a equipa de preceitos estratégicos e mentais para gerir situações de superioridade no marcador.

No ataque, o cenário não compensava a permeabilidade defensiva. A equipa tinha uma inércia tremenda na criação de oportunidades de golo e de dinâmicas atacantes que sugerissem trabalho de treinador. E qualquer treinador cuja equipa se mostre refém da qualidade individual dos seus jogadores está, à partida, a sugerir desconfiança por quem analisa o que se passa.

As boas estatísticas de Pizzi, a velocidade de Rafa, a finalização de Vinícius e a raça de Cervi iam salvando uma temporada que poderia ser ainda pior do que foi.

A saída do Benfica

Outro domínio relevante quando se fala de um regresso de um jogador ou treinador é como foi o momento da saída. No caso de Lage, terá sido uma mistura de vários factores. A nível de competência não parecia haver forma de Lage reverter a queda para o abismo de uma equipa em agonia.

Depois, a pressão externa já não tornava saudável a relação com o terceiro anel. Por fim, havia um presidente em namoro intenso com Jorge Jesus, disponível para chegar à Luz no Verão seguinte.

E tudo isto mudou aquilo que era Bruno Lage. No início, apresentou-se com uma postura refrescante, mostrando-se um homem leve, solto, bem-disposto, com jogo limpo e disponível para detalhar tacticamente o jogo, fugindo aos subterfúgios que contagia boa parte dos treinadores.

Com o adensar das dificuldades da equipa, Lage tornou-se um homem mais azedo e totalmente vazio de explicações técnicas e tácticas para o sucesso e insucesso da equipa em cada jogo.

E acabou a atacar os jornalistas, falando de jantares e viagens que nunca se percebeu bem o que eram, de onde vinham, quem beneficiavam e de que forma prejudicavam o futebol pobre da equipa e o trabalho de Bruno Lage.

Um benfiquista para unir benfiquistas

Para uns, essa foi uma saída cinzenta de um homem que, afinal, não era o que chegou a parecer. Para outros, apenas uma separação temporária de um homem prejudicado pelo contexto – e que haveria de regressar ao seu clube.

Estes últimos têm em abono da sua tese o benfiquismo de Lage. Numa altura em que não havia assim tantos treinadores livres que fossem portugueses e de primeira linha, a aposta num filho da casa é a saída vista como mais fácil para aglutinar uma nação que nunca esteve verdadeiramente conectada com o alemão Schmidt.

Questionado sobre que treinador é em 2024, quatro anos depois de sair e das aventuras em Inglaterra e Brasil, Lage optou por não detalhar. “O caminho é de aprendizagem. As experiências que tive [Wolverhampton e Botafogo] foram de aprendizagem”. Que aprendizagem? Não especificou, mas repisou uma e outra vez o tema do benfiquismo, falando da ligação emocional de regressar ao clube.

A nível táctico e estratégico também não é fácil definir o técnico português. Em alguns momentos da carreira, deixou claro gostar de defesas bastante altas e de querer ter sempre cinco jogadores em processo ofensivo, com um extremo aberto e outro mais por dentro e laterais projectados. E tentou várias vezes encontrar um segundo avançado que permitisse variar com facilidade um 4x2x3x1 para um 4x4x2.

Não é propriamente um seguidor dos preceitos de pressão de Schmidt, porque olha para esse momento do jogo de outra forma, mas há pontos comuns com o que o alemão tem feito, pelo menos nas características dos jogadores que quer em cada lugar.

Mas também teve momentos nos quais apostou em linhas de cinco defesas e com exploração do espaço e saídas rápidas, com alas rápidos e verticais, mais do que jogadores de espaços interiores e ligações curtas e apoiadas.

Que Lage vai ter o Benfica? Provavelmente, o primeiro. Se o fará em 4x3x3 ou 4x4x2 é uma dúvida legítima. Por um lado, tem vários jogadores que “salivam” por um 4x3x3, como Kokçu, Arthur Cabral ou mesmo Di María. Por outro, recebe já em andamento uma equipa com fundamentos de 4x4x2 e que podem seduzi-lo a encontrar o seu Félix e tentar replicar o que tão bem fez quando foi campeão – e nomes como Renato Sanches, Akturkoglu ou Amdouni poderão pedir a continuação do sistema.

Os treinadores gostam de dizer que acima do sistema está a dinâmica criada. Mas acima de tudo isso existem as oportunidades de golo, os golos, a boa defesa, as balizas a zeros, as vitórias e os títulos. E nisso está por ver se Bruno Lage é o de 2018/19 ou o de 2019/20.



Source link