Kamala Harris repetiu as palavras “Donald Trump” dezenas de vezes ao longo do debate. Trump referiu-se-lhe apenas como “ela” – ela.
Este era o debate mais esperado. Por três razões:
Porque o debate presidencial anterior, de junho entre Trump e Biden mudou o rumo das eleições. E o desempenho catastrófico de Biden, que levou à sua desistência, parecia ter tornado inevitável a vitória de Trump. Paradoxo e dúvida.
Ora o debate seguinte, que deveria ser o segundo entre eles, com o ligeiramente mais novo, Trump, a continuar a fustigar o ligeiramente mais velho, Biden, por ser mais velho, e decrépito, já não foi entre os dois, mas entre um Trump mais velho e uma Harris 20 anos mais jovem.
E deste debate podia esperar-se muito: um Donald Trump contido, focado em dar testemunho da sua capacidade e feitos; ou, ao invés, a confirmar as piores suspeitas, desbragado e incontido, com escasso nexo. Ou uma Kamala Harris a dizer ao que vem, que políticas a implementar, o futuro da economia e dos empregos, a interrupção voluntária da gravidez, mas também a imigração; ou, ao invés, ambígua, a repetir o mantra dos seus valores – ainda os mesmos, mesmo se a maioria (dos indecisos) não perceba bem quais são.
E a que assistimos, afinal?
De que cor ficou, depois do debate decisivo (?) de ontem, o mapa eleitoral norte-americano? Mais avermelhado, ou azul lápis lazuli?
Recordo o contexto:
No peculiar sistema eleitoral norte-americano, resultado do compromisso bicentenário entre soberania federal e autonomia dos (50) Estados federados, cada Estado tem um certo número de delegados (entre 3 e um máximo de 54 delegados da Califórnia). Ganha quem receber mais de 270 votos do colégio eleitoral, isto é, mais de metade dos 538 delegados, não quem obtém a maioria dos votos. Já por 5 vezes o vencedor teve menos votos do que o seu concorrente – em 2016, Hillary Clinton, com mais 3 milhões do que Trump, perdeu (227 delegados contra 304); em 2000, Al Gore foi vencido por Bush, e no século XIX, John Adams, Rutherford Haynes e Benjamin Harris venceram sem a maioria do voto popular.
Isto dito, dos 50 Estados norte-americanos (e estou a olhar para o mapa eleitoral), 24 deverão dar a vitória aos vermelhos (ie. republicanos, ie, Trump), 18 aos azuis. Sobram 8 – os chamados Estados decisivos, ou púrpura, ou estados indecisos. E é nesses que tudo se decide: Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Nova Jersey, Carolina do Norte, Pensilvânia, Wisconsin. 120 votos eleitorais.
Ora, o que ficou depois deste debate?
Trump não resistiu a ser Trump. Fez um esforço de contenção, glorificou o seu legado, não resistiu à agressividade, acusou Harris de todos os defeitos da administração Biden foi ele-mesmo, histriónico, convicto, o que se pode esperar de Trump. Mas quem, talvez contra todas as expectativas, marcou o tom do debate, foi Harris – provocou Trump e este deixou-se provocar, apresentou o seu plano para a economia (por duas vezes), evitou as armadilhas (imigração, Afeganistão).
Na minha opinião, no que respeita a Trump dois momentos particularmente fracos: quando afirmou que em Springfield os imigrantes chegaram a comer os cães e ao convocar Orban, esse grande líder europeu, em sua defesa. Já Harris terá falhado ao não aprofundar a questão da imigração (cavalo de batalha de Trump) e, talvez, ao não ser suficientemente clara no que concerne à saída dos EUA do Afeganistão – ainda que a sua resposta tenha levado Trump a uma curiosa diatribe sobre o convite a “Abdul” (veja-se o debate).
E depois, o visual. No debate de junho, Biden apareceu pálido, baralhado, a boca seca, o olhar perdido num horizonte qualquer. Hoje, Trump fez lembrar Biden no debate de junho, mas isso não é de estranhar. É mais velho e a carta da idade deixou de ser o seu trunfo. Ao mesmo tempo, Harris projetou uma imagem de jovialidade, juventude e, se quisermos, força. A dado momento fez-me lembrar uma procuradora-geral a interrogar um arguido.
E então, que veredicto?
Talvez a generalidade dos apoiantes de de Trump continuem adeptos de Trump; e os de Harris também. Mas em relação aos indecisos, é provável que este debate tenha convencido uma boa parte. Como sucedeu, aliás, com uma certa e conhecida cantora:
“Vou votar em Kamala Harris (…) porque ela luta pelos direitos e causas que acredito que precisam de um guerreiro para defendê-los” – assinado Taylor Swift – Mulher-gato sem filhos.
E deixo a frase que mais me impressionou, de Kamala Harris a Donald Trump:
“Eu não sou Joe Biden, e certamente não sou Donald Trump. Sou de uma nova geração”.
Ou, dito de outra forma:
“Está a concorrer contra mim, não contra Joe Biden”. Acredito que Trump não o esquecerá, depois da noite de hoje.