Agora em 2025, quando o Brasil lembra os 40 anos do fim da ditadura militar, o noticiário mostra, dia após dia, casos de violência policial, uma das marcas deixadas pelo regime na segurança pública do nosso País. Esses episódios ocorrem, em grande parte, longe dos olhos das classes mais altas, atingindo principalmente as periferias e comunidades mais vulneráveis.
Esta reportagem faz parte da série ‘Heranças da Ditadura’, que fala sobre as marcas deixadas pelo regime militar nas famílias, na educação, na política e na segurança pública 40 anos depois do fim da repressão no Brasil.
Em 10 anos, o número de pessoas mortas pelas polícias em todo o Brasil aumentou 188,9%, resultando em 6.393 vítimas apenas em 2023. Esses são os dados mais recentes sobre letalidade policial do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Desde 2013, a entidade monitora o indicador de mortes decorrentes de intervenções policiais.
Essa violência policial crescente seria uma das maiores heranças deixadas pela ditadura militar no Brasil, na opinião de Adilson Paes de Souza, tenente-coronel reformado da PM de São Paulo.
“Nós não temos, de forma declarada, centros de tortura como existiam durante a ditadura. No entanto, a tortura e a eliminação de pessoas ainda ocorrem. Essas pessoas são eliminadas pelo aparelho repressivo do Estado, e a polícia sempre alega que houve um confronto ou tiroteio. Ou seja, há a mesma lógica de atuação”, analisa Souza em entrevista ao Terra.
“Além disso, temos investigações oficiais que não levaram a nada, assim como um Judiciário que, no passado, não tratava esses casos com a devida seriedade. Infelizmente, essa realidade persiste nos dias atuais. Portanto, existem similaridades muito preocupantes e impactantes entre essas duas épocas”, lamenta.
Origem da Polícia Militar
A Polícia Militar adquiriu o formato que tem atualmente a partir de julho de 1969, durante o período da ditadura no Brasil. Naquele contexto, o Decreto nº 667 reorganizou as polícias estaduais em todo o território nacional. A partir dessa medida, o policial que atua nas ruas, em contato direto com a população, desempenhando funções ostensivas e preventivas, deixou de ter um caráter civil, como ocorria anteriormente. A partir de então, esse profissional passou a ser um militar, ficando subordinado ao Exército Nacional.
“O Decreto 667 cita expressamente o AI-5 [Ato Institucional nº5] como fundamento, como inspiração. Por que esse decreto foi editado? Porque, uma vez que o AI-5 recrudesceu a ditadura, precisava de mão de obra para fazer valer e aplicá-lo em todo o território nacional. E as Forças Armadas, e com mais propriedade o Exército, não tinham efetivo que pudesse estar presente em todo lugar”, diz Souza, que critica a violência policial em seu livro O Guardião da Cidade.
O tenente-coronel reformado é doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano e pós-doutorando em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Ele explica que o governo da época definiu que esse efetivo, capaz de atuar em todo o País, seria a polícia, uma vez que ela está presente em todos os municípios.
“Então, houve a necessidade de militarizar a polícia. Isso quer dizer transformar as polícias estaduais em miniexércitos, em uma representação do Exército com todos os seus valores, na caça aos ‘subversivos’, na caça aos ‘inimigos da nação’. Este decreto representou o ápice do processo de militarização das polícias”, acrescenta.
AI-5 e os ‘anos de chumbo’
Instaurado em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5, popularmente conhecido como AI-5, foi um decreto emitido pelo então presidente Arthur da Costa e Silva, quatro anos após o golpe militar de 1964. Considerada a medida mais repressiva do regime, a norma marcou o início do período conhecido como “anos de chumbo”.
O AI-5 legitimou a perseguição política a opositores do governo e autorizou uma série de ações excepcionais, como o fechamento do Congresso Nacional, a intervenção federal em Estados e municípios e a suspensão dos direitos políticos de cidadãos. Durante sua vigência, mais de 170 mandatos parlamentares foram cassados.
O ato foi criado com o objetivo de combater a organização da luta armada e dos movimentos estudantis, que, a partir de 1966, ganharam força e se espalharam por diversos setores da sociedade.
A implementação do AI-5 também intensificou a censura à imprensa brasileira, que deixou de ser discreta e passou a ser explícita. Jornais recebiam instruções diretas da Polícia Federal sobre quais temas não poderiam ser publicados, especialmente aqueles relacionados à oposição ao regime. Além disso, produções culturais, como filmes, livros e músicas, precisavam de autorização prévia do governo para serem divulgadas ao público.
Militarização e aumento da letalidade policial
Diferentes estudos e pesquisas mostram que, em 1960, quando os homicídios em São Paulo ainda eram endêmicos e as responsabilidades de segurança eram divididas entre a Força Pública, a Guarda Civil e a Polícia Civil, apenas uma morte cometida por agentes policiais foi oficialmente registrada na cidade. Cinco anos depois, em 1965, esse número subiu para dois óbitos.
A partir de 1970, durante o regime militar, a situação começou a mudar. A Polícia Militar foi consolidada e passou a ser comandada por oficiais do Exército. Naquele ano, as mortes causadas por policiais saltaram para 28, atingindo 280 em 1980.
A prática de execuções de suspeitos continuou a crescer. Somente em 1992, foram registradas mais de mil mortes na capital paulista, segundo o portal Memórias da Ditadura.
Em todo o Brasil, de 1964 a 1985, segundo levantamento da Human Rights Watch (HRW), 20 mil pessoas foram torturadas, pelo menos 434 morreram e 4.841 representantes eleitos pelo povo foram destituídos de seus cargos.
“Esse aumento de mortes é uma prova de que essa militarização contribuiu em muito para o aumento da letalidade da polícia. Porque a polícia passou a ser concebida não para proteger, mas para combater o inimigo, eliminar o inimigo da sociedade”, disse Souza.
Segundo o especialista em segurança pública, a abordagem violenta da polícia não começou na ditadura militar. Remonta ao Brasil Império quando corporações policiais foram criadas para impor a ordem e tratar de forma diferenciada grupos marginalizados, como escravos fugitivos, praticantes de religiões de matriz africana e frequentadores de gafieiras. “A Polícia Militar se insere nesse meio, nessa ótica de segregação e de uma certa limpeza social”, explica.
A ditadura militar, no entanto, intensificou isso. “A ditadura foi a cereja no bolo”, afirma Souza. “Houve a necessidade de ter miniexércitos nos Estados para caçar e eliminar os inimigos.”
Foi a ditadura que implantou um modelo de policiamento ostensivo marcado pela presença constante de tropas altamente armadas nas ruas. Integrantes da Polícia Militar, esses agentes têm como função principal monitorar e reprimir atividades criminosas, mantendo uma presença frequente no cotidiano das cidades.
Antes de 1964, a Força Pública atuava principalmente em situações de desordem pública, com pouca interação direta com a população no dia a dia. Sua atuação era mais concentrada em áreas rurais ou próximas aos quartéis.
Com a ditadura, esse modelo mudou. A Polícia Militar passou a ser uma presença constante nas ruas, em contato direto com os cidadãos. Esse processo de militarização do policiamento ostensivo foi consolidado durante o regime militar e, mesmo após a redemocratização e a Constituição de 1988, não houve alterações significativas nesse modelo.
Marcas que sobrevivem até os dias atuais
Mesmo após o fim da ditadura, em 15 de março de 1985, a vigilância das ruas continuou a ser exercida por uma polícia militarizada, cujo treinamento é voltado para o combate e a neutralização de alvos considerados como ameaças, uma lógica que permanece até hoje.
Os “anos de chumbo” chegaram ao fim, mas a arquitetura policial da ditadura foi constitucionalizada. Em 2023, por exemplo, a Lei Orgânica das Polícias Militares foi sancionada com vetos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Apesar de ser apontada por muitos como um avanço democrático, Souza discorda. “Essa lei finge que revogou o Decreto 667, mas, além de não revogar, reforçou aspectos da militarização da polícia existente. Hipermilitarizou a polícia, acentuou a militarização e a autonomia das polícias”, opina.
O resultado, segundo ele, é o aumento da letalidade policial. “Não importa se o governo é dito de direita ou de esquerda, letalidade é o que une esses dois governos. Todos acreditam que a letalidade é um meio eficiente de proporcionar segurança à população, o que é um grande engano”, critica. Ele destaca que, apesar da violência policial, a sensação de insegurança só aumenta, assim como a expansão do crime organizado.
“Por que muitos políticos embarcam nessa viagem da militarização? Populismo eleitoral da pior espécie. A população se sente abandonada à própria sorte. A população sente no dia a dia que está abandonada. Todos nós sofremos medo de ser assaltados, de sermos mortos, de sofrermos algum tipo de crime. O medo é um importante elemento de dominação social, e esses governantes sabem lidar como nunca com o nosso medo”.
A corrupção dentro da polícia também é um problema grave, agravado pela falta de controle externo, conforme aponta o tenente-coronel reformado. “Cada vez mais que você dá autonomia, cada vez mais você reduz a possibilidade de controle da polícia, você cria um ambiente propício para que a corrupção e outras práticas de desvio de conduta floresçam”, alerta.
Além disso, a formação e a ideologia da Polícia Militar, segundo Souza, são heranças diretas da ditadura. “Muito mais que um treinamento, é uma ideologização. A ideologia militar foi colocada dentro da instituição, transformando-a num exército cuja razão de existir é combater e eliminar o inimigo.” Essa mentalidade, segundo ele, permanece quase intacta desde então. “Na essência, é a mesma coisa”, afirma.
O especialista em segurança pública ainda explica que a estrutura militarizada da Polícia Militar não só impacta a sociedade, como também afeta os próprios policiais. Segundo ele, “a identidade da pessoa também é constituída pela instituição à qual ela participa”.
A natureza estressante da atividade policial, onde o risco de morte é uma constante, cria um ambiente propício para o adoecimento mental. Ele destaca que essa combinação de fatores contribui para “a eclosão de casos de esgotamento mental, adoecimento psíquico, estresse e até mesmo suicídio”.
Não é à toa que os casos de suicídio entre policiais militares vêm aumentando consideravelmente. Segundo os dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, 110 policiais militares e civis em atividade tiraram a própria vida, enquanto 107 morreram em combate — sendo 46 durante o exercício da função e 61 em “bicos”.
Comparado a 2022, o índice de suicídios subiu 26,2%. “É óbvio que, além da natureza da atividade policial ser extremamente gravosa, a instituição, com toda a violência que gera, também afeta os seus membros”, afirma Souza.
Cultura da impunidade
Para o tenente-coronel reformado da PM, outra herança deixada pela ditadura é a cultura da impunidade. Na cidade de São Paulo, por exemplo, um policial militar que comete um homicídio tem menos de 2% de chance de ser condenado e preso. Entre 2015 e 2020, foram registrados 1.823 assassinatos cometidos por PMs em boletins de ocorrência, mas apenas 20 resultaram em condenações pelo Tribunal do Júri até setembro de 2024.
Os dados foram levantados, organizados e analisados pela advogada e pesquisadora Débora Nachmanowicz de Lima em sua dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da USP.
Débora revela que 29% das ocorrências registradas nem sequer foram investigadas. Não há referência a 530 dos assassinatos nos dados oficiais obtidos do Tribunal de Justiça de São Paulo via Lei de Acesso à Informação.
Dos 71% restantes, 1.293 viraram inquéritos pela Polícia Civil (821) e pela própria Polícia Militar (98), enquanto 374 casos estão em andamento, correm em segredo de Justiça ou simplesmente não tiveram movimentações registradas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Dos 1.293 inquéritos iniciados entre 2015 e 2020 na capital paulista para apurar homicídios cometidos por policiais militares, apenas 122 foram transformados em denúncia pelo Ministério Público até setembro de 2024.
A explicação mais comum, segundo a pesquisadora, é a falta de vestígios forenses, vídeos ou testemunhas. Restam apenas os corpos e os relatos dos próprios policiais.
Souza destaca que a existência da Justiça Militar reforça a impunidade. “Numa democracia, nós temos justiça militar julgando policiais militares. Esse é um resquício da ditadura. E nesse cenário de violência, é muito importante falarmos sobre o filme Ainda Estou Aqui. A realidade vivida e retratada da família de Eunice Paiva é a mesma que muitas famílias enfrentam hoje: uma realidade em que não há apoio do Estado, em que se sabe que algo aconteceu, mas a mentira prevalece. Isso mostra o quanto a ditadura ainda se faz presente nos dias atuais”, opina.
Ele ressalta que, mesmo quando os casos vão para a Justiça comum, a impunidade prevalece. “O sistema existe para privilegiar, para proteger o policial. Não estou dizendo que ele deve existir para prejudicar o policial, mas para checar os fatos, avaliar os fatos e trabalhar com a verdade.”
Para o especialista, a solução passa por um programa de Estado de segurança pública, que transcende governos e partidos. “Precisamos trabalhar com escolaridade, controlar o sistema prisional, controlar as polícias e, acima de tudo, garantir transparência.”
Segundo explica, lobbies poderosos atuaram na elaboração da Constituição de 1988, incluindo o das polícias Militar e das Forças Armadas, para manter a estrutura da segurança pública idêntica à existente durante a ditadura.
“Nós temos um sistema de segurança que é o mesmo da ditadura. E eu pergunto, como algo gestado na ditadura, para recrudescer os efeitos e a ação da ditadura, pode coexistir com o ambiente democrático? Então, nós temos um sistema de segurança pública ditatorial inserido no seio de uma democracia, e o pior de tudo é que isso corrói a democracia, destrói a democracia”.
Souza afirma que todos esses resquícios contribuem para que cada vez mais pessoas defendam a volta do período ditatorial.
“Nós temos um sistema incompatível com a democracia e que está destruindo de dentro para fora ela. Além de ceifar vidas, está ceifando a nossa democracia” — Débora Nachmanowicz de Lima
“A gente não passou a limpo de fato o papel das Forças Armadas e das polícias durante a ditadura. Tudo foi varrido para debaixo do tapete, mas agora o tapete não aguenta mais – essas questões estão vindo à tona. As pautas reacionárias e ditatoriais estão ganhando cada vez mais força”, conclui o tenente-coronel reformado.
Edição e supervisão: Fabiana Maranhão