Estreada há poucos dias, a série O Casal Perfeito já é a mais vista na Netflix em Portugal e já está a ser dissecada on-linepor isso o seu trabalho já está feito. Certo? Não é bem assim. Há que resolver este crime contra a linearidade e falar um bocadinho de como Nicole Kidman, Liev Schreiber, Dakota Fanning e sobretudo Eve Hewson fazem desta série popular apesar do que poderiam indiciar os seus nomes — não é uma série de prestígio, arrisquemos, é um policial de ricos. E vê-se de uma assentada.
Na já conhecida tradição de séries sobre os ricos que não consegue deixar de levar a sério tanto o privilégio desta espuma cimeira das chamadas classes sociais quanto o seu direito a ser humanizados, O Casal Perfeito é também um pedaço de comédia. Será involuntária, questiona-se a crítica Roxana Hadidi no site Abutreou bem afinada, porque é realizada por Susanne Bier, premiada com Óscares e Emmys, conhecida pela sua versatilidade no grande e pequeno ecrã e pela atenção milimétrica à beleza de um plano — seja sobre um vol-au-ventseja sobre uma mulher à beira da morte.
O Casal Perfeito é um olhar escarninho e invejoso sobre aquelas figuras que a América oferece nas franjas da sua realeza, uma espécie de Kennedys de bufêmas que em vez dos Hamptons ou de Hyannis Port estão em Nantucket. A maresia, as roupas pastel ou garridas, a suavidade com que o ethos beto se entranha na paisagem e na aspiração do espectador têm desta vez uma amiga: Amelia não é rica e vai-se casar com um dos filhos dos Winbury, mas está com um pé cá e outro lá — a toxicidade que domina as relações dos Winbury é afogada numa orgia permanente de ostras e mojitos de mirtilo, mas ela incomoda-se, mesmo quando a paisagem é incrível e as mordomias são confortáveis.
@netflix a sequência de abertura de THE PERFECT COUPLE é um sonho febril de Nantucket #OCasalPerfeito música: @Meghan Trainor coreografia: @charmladonna ? A dança de abertura do casal perfeito – Netflix
E, ponto de ordem, a série está perfeitamente colocada neste início de Setembro e esse é provavelmente o seu maior trunfo. O Casal Perfeito é uma jóia da arte de programar, como é uma arte colocar o tipo de livro certo à venda num aeroporto. Há coisas que resultam dentro de balizas muito específicas. Greer Garrison Winbury (Kidman) e Tag Winbury (Schreiber) concordariam, seguramente, mesmo abdicando do seu quinhão de responsabilidade por esta minissérie chamar logo a atenção.
A série está também cheia de ironias e ramificações, além de algumas alterações em relação ao romance homónimo de Elin Hilderbrand em que se baseia. Hilderbrand, segundo o diário britânico O Guardião, “é conhecida como a rainha das leituras de praia”. Greer, cuja interpretação está a dar grandes louvores a Kidman, é escritora desse tipo de livros, apesar de achar aviltante que sejam postos à venda nas livrarias de aeroportos, lá está. Kidman volta a papéis que lhe têm dado notoriedade televisiva, como a incontornável Pequenas Grandes Mentirasda HBO, que por seu turno foi o motivo pelo qual a protagonista aqui se chama Amelia e não Celeste — este último era o nome da personagem da actriz australiana em Pequenas Grandes Mentiras, pequeno tratado sobre os bastidores das vidas dos privilegiados.
É que são mesmo privilegiados. Como diz à polícia o organizador de eventos que trabalha com os Winbury, eles são “o tipo de ricos que matam alguém e se safam”. Sim, o crime. Ou a morte, porque até ao final não se sabe o que aconteceu no jantar pré-casamento àquela pessoa que, com grande inconveniência, obrigou a adiar a festa porque morreu.
Gente que não sabe estar, claramente, e que deu bastante trabalho a Eve Hewson e à sua Amelia. Foi um trabalho desafiante impregnar-se de tanta dor, disse ao New York Times, e não tanto tactear aqueles estilos de vida. Filha de Bono Vox, vocalista dos U2, está habituada a estas coisas. E vinda de uma pérola de família unida mas acometida pela violência como a retratada na série da Apple TV+ Irmãs másjá tem calo.
Há, portanto, uma série de camadas para fatiar antes ou depois de se ver O Casal Perfeitoque não ambiciona a ser mais do que aquilo que é, um “quem fez isso” e não um pastelão de “coma os ricos”. Como a reverenciada O Lótus Brancoporém, consegue algo que tem pertencido às séries de prestígio. Fazer o espectador resistir a tocar no botão “saltar a introdução”. Porque o genérico, com o elenco a dançar na praia Criminal, de Meghan Trainor, é delicioso. O elenco bem criou um grupo secreto no WhatsApp para tentar escapar à cena, mas nada feito. No final do sexto e último episódio, há uma versão ligeiramente expandida. Mas não devem ser precisos muitos mais argumentos para chegar ao fim de O Casal Perfeito. O fim do Verão é inevitável, e os casais perfeitos só existem para ser desfeitos.