O Coração Ainda Bate. O camião do lixo


Certamente conhecem pessoas que dizem: “dormi demais”. Eu nunca fui uma dessas pessoas. Durmo mal desde o tempo em que o sono podia nos empurrar da madrugada para a tarde. Desde as primeiras baladas, eu, ficando na casa de amigas, acordava três horas depois de ir para a cama e ficava naquele desconforto de estar em uma casa que não era a minha, lidando com a angústia de o tempo não passar. Era pouco normal eu não dormir até tarde. Era como se fosse uma adulta sem tempo ainda para ser. Na verdade, minha voz mais melancólica já estava dentro de mim antes que eu pudesse sequer pronunciar a palavra “melancolia”.

Atravessei a vida dormindo mal. Talvez os horários de rádio não tenham ajudado. Com 17 anos eu ia pegar o primeiro trem da manhã quando ainda era noite. Não tinha ninguém na rua. Eu fazia aquele caminho todos os dias, sabendo que na luz das carruagens eu reconheceria os mesmos rostos, que, como eu, faziam aquele percurso. Para alguns, o fim da noite, para outros, como eu, o início de um dia que se queria novo. Os dias podem ser novos até quando a rotina tenta nos embaçar. Eu sacudia o sono e o desgaste que a repetição nos traz.

Mais tarde, quando comecei a dividir minha cama com outra pessoa, tive que me acostumar com os sonos que são sempre diferentes: tão diferentes quanto os sonhos. Tive que incorporar na minha noite intranqüila a respiração alheia, a fala que surge incontrolável, os movimentos bruscos. Dormir acompanhada tem que se lhe diga. Até passar a ser parte da tal rotina. A que não se quer embaçada.

Posso ver minha vida através do sono. Aos 30 anos acordava às 4.14 para ir para outra rádio. Por que não 4.15? Porque eu prefiro horas pares. Porque ímpar me machuca, mesmo que seja difícil dormir junto. Essa volta pela cidade, que se dava depois pelas 5 da manhã, era um filme acontecendo sem câmera. Nossa visão deixava arrastar-se pelas fracas luzes da cidade, enquanto os ouvidos cediam ao torpor do caminhão de lixo. Não por acaso, hoje, em noites longas de insônia, encontro conforto nesse mesmo caminhão de lixo que embala os inquietos, na chuva que insiste em não cair ou nos aviões que atravessam o céu como a insônia atravessa minhas horas.

Há muito tempo me acostumei a dormir mal. Surgem nas insônias ideias e desenhos nunca possíveis durante o sono. Depois, já consumida pelo gotejamento das horas que acompanho ao segundo, adormeço por fim. Sei que vou adormecer porque a realidade começa a se desintegrar como um quadro de Dali. Meu sono é surreal. Prefiro assim. Deixo a realidade para quando estou acordada e ela me pede resoluções. Nessa metade do dia, em que estou ativa, e vivo em comunidade, volto às ideias que tive durante a insônia. Se ainda fizerem sentido é porque são realmente válidas e devo levá-las adiante. Isso quer dizer que amarroto papéis invisíveis de coisas que perderam a validade no mundo acordado.

Dormir mal faz parte do meu dia-a-dia. Até quando durmo mais, acordo muitas vezes, como se um despertador, que não existe, me chamasse para ir trabalhar de madrugada ou a força da manhã, que estoura na janela, gritasse meu nome e me obrigasse a vivê-la. Não acontece sempre de aproveitar as manhãs. Por inconsciente vingança da adolescente que se acostumou aos trens e ônibus comandados pelos faróis noturnos, é agora, pela manhã, que meu melhor sono acontece. Aquele em que me esqueço da realidade, aquele em que ajusto contas com o passado desconfortável, quando me custava sair da casa sob a chuva torrencial. Era meu pai que me dizia as horas e eu ouvia a chuva e pensava: “daqui a pouco sou eu de novo lá fora.”

A coluna de hoje termina bem: dormi muito. Acordei sem forças para verbalizar as frases que tinha na cabeça. Para mim, que as tenho sempre prontas, é um bom sinal. Achei que poderia escrever sobre o sono sabendo que nunca teremos um bom relacionamento. Deixou de ser um problema. Aqui, deste canto, de forma invisível, acompanho os homens e mulheres que fazem da noite um lugar possível para acordarmos de manhã.

O coração ainda bate.



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