Joana Ferreira não pára de correr. Vai para o quintal da casa, sai para o exterior de balde carregado de água nas mãos. Pede uma máscara porque já não consegue respirar. Ainda há instantes estava tudo bem, naquela parte alta de A-dos-Ferreiros, em Águeda, mas, num ápice, as chamas saltaram a estrada, entraram no eucaliptal, agigantaram-se mesmo ao lado da casa dos pais dela. “Estava a ir embora e de repente foi isto. Ainda bem que não fui”, diz, sem parar de andar, à procura da próxima chama que cresce no chão seco em redor.
Em A-dos-Ferreiros as nuvens negras de fumo há muito que se iam vendo, destacando-se do céu cinzento que cobria toda a zona. O fogo passou por aquela área durante a noite e deitou abaixo postes de telecomunicações, que atravancam o acesso a Préstimo, queimou sinais e tudo o que encontrou pela frente, mesmo até à margem dos muros que rodeiam as casas. Foi assim por todo o lado, por ali. Ninguém consegue dizer onde está pior. Até porque o pior pode estar ausente num segundo e chegar no instante seguinte.
Foi assim, pelas 11h30, em A-dos-Ferreiros. Chamas rasteiras abeiravam-se de duas casas e os moradores, apoiados por alguns poucos bombeiros, tentavam apagá-las, recorrendo a baldes de água e ramos de árvores. Os olhos inchados e vermelhos de Paulo Nunes, 54, mostram bem que esta última tarefa não foi a única do dia nem da noite. Segurando o telemóvel, mostra o negro da noite e os montes a arder, cobrindo toda a encosta em direcção em Talhadas, onde o fogo andou imparável umas horas antes. Dizem que veio dali, mas Nuno Pontes, 46 anos, que saiu do centro de Águeda para acorrer a familiares, encolhe os ombros, desalentado: “A gente nem sabe de onde vem.”
Di-lo olhando para a encosta em frente onde, há dois minutos, os eucaliptos permaneciam verdes e agora estão já tomados por uma linha de chamas vermelhas e alaranjadas que se vai estendendo, subindo sempre. Lá em cima há casas, diz ele, aflito. Uma jovem liga para a Protecção Civil e desata a correr, deixando para quem a segue a resposta: “Não há bombeiros”.
Lá em cima, para onde sobe o fogo, é onde está Joana Ferreira, 42 anos. Um agente da GNR, o braço coberto de sangue por arranhões de uma queda do trabalho das últimas horas, tenta orientar o trânsito. Os moradores, de baldes de água ramos nas mãos, abeiram-se das árvores altas por onde o fogo sobe. Mas as chamas avançam sempre, em direcção à estrada e à casa dos pais de Joana Ferreira. E, um minuto depois, o chão começa a arder já mais à frente, noutra direcção. A mulher, ajudada por outros moradores, tenta encher os baldes, mas uma das torneiras já não deita água e da outra sai um fio escanzelado, que a faz desesperar. “Já não temos água outra vez. O pior é cortarem a água, quando a gente vale a tanta coisa”, diz.
“Passou por aqui um inferno”
Um único auto-tanque chega no momento providencial. Os eucaliptos em frente à casa já ardem muito perto da berma, é para lá que atiram água. As projecções do outro lado são apagadas por moradores e os elementos da GNR, com a pouca água que vai saindo e os ramos de árvores.
Por ali, a situação ficou mais calma, mas o fogo salta para outro lado. Os céus azuis que se vêem mais à frente, na estrada em direcção ao centro de Águeda, rapidamente se vão enegrecendo. O vento não dá sossego. As chamas saltam para terrenos secos e os bombeiros não conseguem acudir a toda a gente nem chegar a todo o lado.
Manhã cedo, em Toural, Valongo do Vouga, Noémia Almeida, 62 anos, encaminha o cão Rex para casa, enquanto os bombeiros vigiam o que já ardeu durante a madrugada e os focos que ainda permanecem activos. “Não fui à cama. Passou por aqui um inferno, completamente. Era labaredas de um lado ao outro, não dava para descansar. Só visto”, relembra, o rosto coberto por uma máscara. Houve casas em risco, um estábulo ardeu, mas José Almeida, 77 anos, conseguiu retirar a tempo o cavalo que está agora a aguardar nova morada, no pátio da casa do homem.
Foi assim a noite toda, foi assim a manhã. E será assim a tarde. Onde o fogo já passou, as persianas das casas permanecem fechadas e não se vê ninguém. Onde ele ronda e pode chegar, as pessoas agrupam-se nas ruas, máscaras a proteger os rostos, olhos postos no céu. Será que chega aqui? É a pergunta que parece saltar do rosto aflito de todos. Ninguém confia neste tempo quente, no vento forte, nas chamas que saltam. Rodrigo Paixão, 26 anos, já não deixou Toural para ir trabalhar. No ano passado, o fogo também ali andou, mas foi diferente. “Nessa altura, veio de baixo e subiu a encosta. Desta vez, vinha de todos os lados.”