Governos, empresas e responsáveis pelo comércio externo têm pressionado fortemente a União Europeia para que não entrasse em vigor no fim deste ano a pioneira regulamentação que visa combater a desflorestação no mundo inteiro, proibindo a importação de produtos relacionados com o abate de florestas em todo o mundo. O resultado está à vista: nesta quarta-feira, a Comissão Europeia propôs adiar durante um ano a aplicação da legislação.
“Dado o feedback recebido pelos parceiros internacionais acerca do estado da sua preparação, a Comissão propõe dar-lhes tempo adicional para se preparem” para a aplicação da regulamentação, lê-se no comunicado da Comissão Europeia. Assim sendo, a lei passa a ter de ser aplicada a 30 de Dezembro de 2025, no caso de grandes empresas, e apenas em 30 de Junho de 2026 para pequenas e micro-empresas.
Quando foi definitivamente aprovada pelo Parlamento Europeu, a 19 de Abril de 2023, a regulamentação foi saudada como um marco na luta contra as alterações climáticas e contra a perda de biodiversidade. Entre 1990 e 2020, perdeu-se uma área florestada, com toda a biodiversidade que abriga, de 429 milhões de hectares, maior do que a de todos os países da UE juntos. E o consumo dos cidadãos europeus – carne do Brasil, chocolate de África, por exemplo – contribuiu para 10% dessas perdas, durante esse período, dizia o comunicado do Parlamento Europeu sobre a aprovação da lei.
Bife, chocolate, papel…
Pecuária, cacau, café, óleo de palma, soja, borracha, carvão e papel são algumas das matérias-primas abrangidas por esta nova regulamentação, cuja entrada em vigor foi adiada pela nova Comissão Europeia. Não haver violações dos direitos humanos e dos direitos dos povos indígenas é outra exigência desta legislação.
O regulamento da UE relativo à desflorestação (EUDR) exigiria, a partir de 30 de Dezembro, que as empresas importadoras de soja, carne de bovino, cacau, café, óleo de palma, madeira, borracha e produtos afins provassem que as suas cadeias de abastecimento não contribuem para a destruição das florestas mundiais, sob pena de serem sujeitas a pesadas multas.
A desflorestação é a segunda maior fonte de emissões de gases de efeito de estufa que aumentam o aquecimento global e as alterações climáticas, a seguir à produção de energia.
Mas Bruxelas cedeu às críticas e pedidos de países e indústrias produtores, do Brasil à Malásia, que têm afirmado que a legislação europeia é proteccionista e pode acabar por deixar milhões de agricultores pobres e de pequena escala do mercado da UE.
Cerca de 20 dos 27 Estados-membros da UE pediram a Bruxelas, em Março, para reduzir e possivelmente suspender a lei, alegando que prejudicaria os próprios agricultores do bloco europeu, que seriam proibidos de exportar produtos cultivados em terras que tenham sido desflorestadas.
O sector industrial fez eco deste alarme, sublinhando que a lei pode perturbar as cadeias de abastecimento da União Europeia e fazer subir os preços. As empresas terão de mapear digitalmente as suas cadeias de abastecimento até à parcela onde as suas matérias-primas foram cultivadas, mesmo em pequenas explorações agrícolas em regiões rurais remotas.
O limite temporal para a desflorestação foi estabelecido em Janeiro de 2021: se os produtos fossem produzidos com recurso a abate de florestas depois dessa data, não poderiam entrar nos países da UE, sob pena de pagamento de altas multas. A lei seria aplicada no espaço europeu, independentemente de no país de origem dos produtos a desflorestação ter sido considerada legal ou não.
Cacau não cumpre
Países e empresas assustaram-se com estas exigências. Os países produtores de cacau, por exemplo, assinaram uma declaração conjunta no fim de Setembro pedindo à UE pelo menos dois anos mais para conseguirem cumprir o regulamento da desflorestação.
O volume de cacau produzido na Costa do Marfim e no Gana, dois dos maiores produtores, cujo percurso desde o local de cultivo até à exportação, não aumentou durante o ano passado, concluiu um relatório da Iniciativa pelo Cacau e pelas Florestas, apoiado pelas Nações Unidas, divulgado segunda-feira. Segundo esta organização não-governamental, é possível traçar o percurso de 83% do cacau do Gana e 82% do da Costa do Marfim, mas os níveis mantêm-se estáveis desde 2022.
Mas, apesar de insuficientes, estes números podem ser demasiado optimistas: outra organização, chamada Trase, só conseguiu acompanhar o percurso de 35% do cacau da Costa do Marfim, salienta a Reuters, e fontes na indústria dizem que a situação deve ser semelhante no Gana. A possibilidade de exportar para a Europa sendo aplicada a regulamentação da desflorestação fica assim seriamente posta em causa.
Uma coligação internacional de grandes empresas fabricantes de chocolate – como Nestlé, Ferrero, Mondelēz, Mars, Tony’s Chocolonely – e organizações não-governamentais como a Rainforest Alliance “opõe-se firmemente” a que sejam reabertas discussões sobre a substância do documento, diz o site Eurativo.
A regulamentação introduz ainda um sistema de análise comparativa (benchmarking) que faz um classificação dos países ou regiões com base no risco de não cumprirem a legislação anti-desflorestação da UE.
As orientações e o adiamento de 12 meses proposto pela Comissão Europeia destinam-se a “garantir o êxito da EUDR, que é fundamental para dar resposta à contribuição da UE para a questão global premente da desflorestação”, diz o comunicado da Comissão. O documento tem o cuidado de acrescentar que não está a pôr em causa os objectivos ou a substância da lei.
Esta proposta de adiamento terá de ser aprovada pelo Parlamento Europeu e pelos Estados-membros. A Comissão acrescentou que estava também a publicar documentos de orientação adicionais.
Direita e lobbies acusados
Porém, este passo atrás da Comissão Europeia dirigida por Ursula von der Leyen pode ser visto como mais uma cedência perante os lobbies industriais e mesmo a direita europeias – o Partido Popular Europeu, a família política de Von der Leyen, tinha-se mobilizado para travar esta legislação recorda o jornal espanhol O país. Manfred Weber, o alemão que lidera o PPE, é a favor deste adiamento, diz o Euractiv.
Mesmo o chanceler alemão social-democrata, Olaf Scholz, que governa em coligação com os Verdes, mas que está debilitado face ao crescimento da direita e da extrema-direita na Alemanha, pediu a Von der Leyen no Verão que adiasse a entrada em vigor do regulamento da desflorestação, recorda o diário espanhol. Mas também a Áustria ou a República Checa se moviam nesse sentido, e manifestaram-se a favor do adiamento, noticia o Euractiv.
Foram já várias as medidas legislativas europeias de carácter ambiental que durante o último ano que pararam ou voltaram atrás, por acção de lobbies e da maioria de direita na UE, como as relativas à biodiversidade e agricultura, ou a queda do regulamento para o uso sustentável dos pesticidas. A resposta imediata dos dirigentes da União Europeia foi atenuar medidas ambientais para tentar acalmar meses de protestos dos agricultores no início do ano, sobre questões como os apoios à produção, importações baratas e, em alguns casos, medidas de protecção ambiental da Política Agrícola Comum.