Cooperativas agrícolas no Brasil que abastecem algumas das maiores multinacionais do agronegócio estão comprando soja cultivada ilegalmente em reservas indígenas no país, segundo líderes das comunidades tradicionais e informações de processos judiciais, apesar das promessas públicas dessas empresas de respeitar os direitos de posse e os recursos dos povos originários.
A expansão da agricultura comercial em terras indígenas, que compõem cerca de 13% do território brasileiro, gerou divisão e conflitos violentos em dezenas de comunidades, de acordo com a Polícia Federal, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Igreja Católica, e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
A constituição brasileira determina que as terras indígenas sejam de usufruto exclusivo dessas comunidades, enquanto uma lei de 1973 proíbe o arrendamento dessas áreas ou a formação de parcerias para o cultivo de safras comerciais.
Mas as restrições não estão tipificadas no código penal do país, o que dificulta a aplicação da lei, diz a Polícia Federal. E embora seja legal para pessoas indígenas cultivarem soja, poucas têm acesso aos recursos necessários para plantar grãos em escala comercial.
Desde 2013, a área dedicada ao cultivo de soja em 14 reservas indígenas do Rio Grande do Sul cresceu para quase 28.000 hectares, um aumento de 23% ao longo de uma década, de acordo com dados de satélite inéditos fornecidos à Reuters pelo MapBiomas, uma rede colaborativa formada por ONGs, universidades e startups de tecnologia.
“Enquanto há o pessoal que detém o comando, o cacicado, se locupletando de valores expressivos, há outras pessoas morrendo de fome”, disse Aldronei Rodrigues, superintendente regional da Polícia Federal no Rio Grande do Sul.
Para muitos membros das comunidades indígenas do Brasil, o arrendamento de terras continua sendo uma das melhores opções econômicas, de acordo com a Funai. Segundo a entidade, as políticas governamentais não fornecem acesso suficiente a crédito ou suporte técnico para ajudar os indígenas a entrarem na agricultura comercial por conta própria.
Com empregos escassos nas aldeias, muitas pessoas migram para encontrar trabalho como mão-de-obra sazonal ou em frigoríficos por salários relativamente baixos, disseram residentes locais.
“A busca por melhores condições de vida ensejou diferentes ilícitos, [inclusive] arrendamento e cultivo de transgênicos, notadamente no sul do país”, disse a Funai.
O Brasil é o maior produtor e exportador mundial de soja, que é usada em ração animal, biocombustíveis e alimentos processados. Dados comerciais da indústria mostram que dois terços da colheita do Brasil acabam nos mercados globais.
No Rio Grande do Sul, que tem uma população de 10,8 milhões, quase toda a colheita é vendida para cooperativas agrícolas, incluindo a Cotrijal Cooperativa Agropecuária e Industrial (Cotrijal) e a Cooperativa Tritícola Sarandi (Cotrisal), as duas maiores do Estado, de acordo com dois corretores de grãos.
A Reuters falou com quatro líderes indígenas, incluindo os caciques das reservas de Serrinha e Nonoai, duas das mais envolvidas no cultivo de soja no norte do Estado do Rio Grande do Sul, que disseram que os grãos cultivados em suas terras são vendidos para a Cotrisal e outras cooperativas agrícolas.
Mais três membros de comunidades indígenas no Rio Grande do Sul, que falaram sob condição de anonimato, também disseram à Reuters que a Cotrisal era uma grande compradora de soja cultivada por agricultores não indígenas em terras indígenas arrendadas.
“A gente sempre fez esse tipo de coisa, arrendamento contra a vontade, porque não tem como deixar os índios passarem fome”, disse José Oreste do Nascimento, que é o cacique em Nonoai, comunidade de cerca de 3.600 pessoas, há mais de quatro décadas.
Cerca de um terço de Nonoai, de 20.000 hectares, é destinada ao cultivo de soja, mostraram as imagens de satélite, um crescimento de quase cinco vezes em relação à área de soja em 1985, quando os registros do MapBiomas começaram.
Marciano Inacio Claudino, o cacique de Serrinha, também disse à Reuters que a Cotrisal compra regularmente soja de fazendeiros não indígenas que arrendam suas terras ali. O território de Serrinha tem 12.000 hectares e, de acordo com dados de satélite, cultiva soja em cerca de 6.000 hectares.
“A Cotrisal é uma cooperativa de Ronda Alta mesmo, ela é da região”, disse ele, confirmando se tratar da compradora dominante.
Helvio Debona, um executivo sênior da Cotrisal, e Enio Schroeder, vice-presidente da Cotrijal, disseram à Reuters em entrevistas em abril, quando os agricultores gaúchos ainda estavam colhendo sua soja de 2024, que eles vendem para grandes empresas comerciais, incluindo ADM, Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e COFCO.
“A SOJA NÃO TEM MARCA”
Quando questionado sobre a possível origem da soja cultivada ilegalmente em terras indígenas, Debona, da Cotrisal, disse que é impossível rastrear todos os grãos.
“A gente não pode garantir”, ele disse numa entrevista. “Porque a soja não tem marca.”
A Cotrisal não respondeu aos pedidos de comentários adicionais por e-mail. A Cotrijal disse que não comprou grãos de fazendeiros que arrendavam terras em Serrinha e que não opera na área.
Ao longo dos anos, as tradings de grãos globais defenderam o respeito aos direitos à terra e aos direitos humanos, destacando sua atenção às comunidades indígenas em comunicados anuais de sustentabilidade.
A ADM não mencionou direitos indígenas ou disputas de terras em seu relatório de sustentabilidade corporativa mais recente no ano passado. Em um relatório sobre política de direitos humanos em 2022, a empresa observou a prevalência de disputas de terras na América do Sul e disse que não está diretamente implicada em nenhuma delas. O relatório de 2022 não discutiu o cultivo em reservas indígenas.
Em um e-mail para a Reuters, a ADM disse que investigou as descobertas da agência de notícias e não encontrou evidências de que a soja que comprou tenha sido cultivada em terras arrendadas nas reservas de Nonoai e Serrinha.
“Nós não compramos grãos de territórios indígenas na região do Rio Grande do Sul”, disse Jackie Anderson, do departamento de comunicação da ADM.
No entanto, comprar de grandes cooperativas de agricultores no sul do Brasil pode obscurecer a origem dos grãos, de acordo com seis processos movidos entre 2008 e 2022 pelo Ministério Público Federal (MPF). Pelo menos dois dos casos estão em andamento.
Bunge, Cargill, COFCO e Louis Dreyfus não responderam aos pedidos de comentários e encaminharam as perguntas à Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove).
“As cooperativas citadas, Cotrijal e Cotrisal, nos declararam que não compram grãos produzidos na RI Nonoai e na TI Serrinha”, disse a Abiove em um e-mail.
A Abiove disse que seus membros cobram seus fornecedores indiretos para garantir que suas cadeias de suprimentos estejam em conformidade com as leis e obrigações contratuais relacionadas a compra de grãos de áreas protegidas.
André Nassar, presidente da Abiove, disse em uma mensagem separada que as tradings podem “interromper todas as compras” de uma cooperativa se ficar claro que ela está comprando soja de territórios indígenas.
Nassar disse ainda que as empresas associadas à Abiove também podem pedir às cooperativas garantias de que a soja foi cultivada por membros da comunidade indígena –e não oriunda de áreas arrendada a terceiros.
A Abiove não respondeu às perguntas da Reuters sobre se seus membros alguma vez recusaram uma compra da Cotrisal ou da Cotrijal, e não forneceu mais evidências de seus esforços para remover grãos de terras indígenas de sua cadeia de suprimentos.
“UMA PRÁTICA NEFASTA”
A Reuters analisou documentos de ações judiciais, incluindo uma nota fiscal da Cotrisal de novembro de 2018, onde consta a venda de herbicidas contra a entrega futura de grãos. O nota em questão foi emitida em nome de um fazendeiro sendo processado pelo MPF por arrendar terras para plantar soja em Serrinha.
Decisões judiciais em 2017 e 2018, revisadas pela agência de notícias, ordenaram o bloqueio de toneladas de soja cultivadas em terras indígenas de silos operados pela Cotrisal, Cotrijal e outras cooperativas.
A Cotrisal e a Cotrijal não responderam aos pedidos de comentários sobre as apreensões.
Em uma decisão de julho de 2022, determinando medidas para acabar com o arrendamento de terras em Nonoai, o juiz federal Diogo Edele Pimentel disse que a atividade naquele território era a principal fonte de problema dos residentes.
“Trata-se de uma prática nefasta de apropriação privada de bens públicos, que deturpa completamente sua natureza coletiva e permite o aprofundamento das desigualdades dentro dessas comunidades já tão vulnerabilizadas”, escreveu ele.
Nascimento, o cacique em Nonoai, assim como seu filho e um ex-funcionário da Funai, foram multados em um total de cerca de 4,5 milhões de reais por desvio de lucros de arrendamentos ilegais, de acordo com uma sentença judicial de julho de 2019 vista pela Reuters.
Nascimento disse que um recurso está pendente e que “agora normalizou tudo de novo já”, com fazendeiros não indígenas entregando suas colheitas para as mesmas cooperativas, incluindo a Cotrisal.
“A soja é muito vendida no comércio local, tem cerealista por toda a volta da terra indígena; tem a Cotrisal e cooperativas grandes que compram qualquer quantidade de soja, milho, [de] tudo”, disse ele.
A Reuters não conseguiu verificar de forma independente se o processo continua ativo.
Em 2021, 11 membros da comunidade de Serrinha entraram com uma ação civil pública na Justiça Federal de Carazinho, Rio Grande do Sul, acusando o cacique Claudino de controlar o comércio de soja do território para enriquecer sua família.
O processo de 2021 analisado pela Reuters alegou que Claudino esmagou a dissidência com “violência, opressão e violações dos direitos humanos”.
Em uma entrevista por telefone, Claudino disse que seus detratores espalharam mentiras sobre sua liderança e que a maioria da comunidade o apoia. O processo está em andamento.
Claudino continua sob investigação — mas não foi formalmente acusado — em relação a um duplo homicídio em Serrinha em 2021, que a polícia e membros da comunidade local vinculam a disputas de terra e poder alimentadas pelo comércio de soja. Ele nega envolvimento nos assassinatos.
Pelo menos 30 famílias que se insurgiram publicamente ao envolvimento de Claudino no comércio de soja deixaram a reserva desde outubro de 2021. Várias tiveram suas casas saqueadas e depredadas, de acordo com três das vítimas e um relatório de 2022 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que relacionou a violência aos arrendamentos de terras.
Claudino disse que apenas algumas de famílias deixaram a reserva nos últimos anos, algumas das quais retornaram.
“Tem uns que já estão aqui [de volta]eu aceitei. Mas eu não vou aceitar aqueles que vão vir aqui pra fazer problema de novo pra mim”, disse ele.